Folha de S. Paulo


A raiva gostosinha

Por motivos de maturidade, 15 anos de psicanálise, muita repressão necessária no inconsciente e um comprimido no café da manhã, sou o que podemos chamar de ser humano (quase) controlado. Apenas em sonhos pulo na jugular dos amigos e, mesmo assim, não aperto muito.

Porém, toda a civilidade para sobreviver e socializar nesse mundinho terrível desaparece quando, à noite, esparramada em luxúria privativa, ligo o televisor ao lado de meu cônjuge. Nós zapeamos à procura de documentários sociais, filmes europeus premiados, entrevistas com filósofos respeitados... mas acabamos sempre em algum programa tosco, com pessoas forçosamente débeis, temáticas pífias e diálogos dementes. É a maravilhosa combinação explosiva que nos libera a deliciosa endorfina da raiva.

Ah, mas o Trump ficou ao lado dos racistas, balas perdidas matam bebês na barriga da mãe, terroristas seguem atropelando, Temer é o presidente mais rejeitado da história, Bolsonaro sobe nas pesquisas, mais um jovem homossexual foi espancado na rua e eu vou logo fazer uma coluna celebrando o ódio? Calma, não me refiro a ser um escroto nazista, um selvagem ignorante ou um líder golpista e sem votos. Falo da gana comezinha, da repulsa doméstica, da irritação gostosinha, tipo uma carninha presa entre dentes, aquele furor lícito quando mandamos um alto e longo palavrão para um playboy folgado ou um chefe abusado.

Vocês também assistem coisas que odeiam? Queria entender esse dispensável fenômeno que me acomete. Por exemplo, eu abomino o reality show "Alto Leblon", já viram? Contudo, justamente por ser um circo bizarro, e por me inundar de repugnância por essa específica casta da espécie humana, eu sou sugada pela tela. O jeito de falar, o conteúdo dos pensamentos, as roupas, os dilemas, as profissões, os gritinhos, o show de horror intelectual e emocional que os participantes apresentam como sendo "uma vida boa" me atrai como aquela espiadela doentia em um acidente de estrada. Com tanto livro pra ler, por que perdemos tempo observando o que nos embrulha o estômago e permite indignar o espírito? Odiar pode ser gostosinho?

Eu detesto o programa "Mude Meu Look", um makeover de moda grosseiramente machista. Imaginem que uma garota chega cheia de estilo e personalidade e sai uma patricinha imbecil, maquiada e desequilibrada pelo salto e a mentalidade da mentora. Eu xingo, arremesso coisas na TV... mas não perco um.

Posso citar ainda várias desgraças como o reality "Pelados e Largados", alguns seriados brasileiros vexatórios (lembra aquele ator global famoso virando um animaaall? Era tão ruim que eu fazia até pipoca pra ver!) e diversas calamidades, com pessoas reais ou ficcionais, que ensinam mulheres a arrumarem príncipes.

Espreitar confortavelmente o quanto os desejos mais egocêntricos, as performances mais histéricas e as criações mais pretensiosas podem ser ridículas dispara em mim não apenas uma espécie de irritação divertida, mas também um acalanto: a certeza de que pertenço ao lado mais iluminado da força. Fora tantos benefícios, e já que, apesar de bichos somos bem-educados e alunos de ioga, tosquices formatadas podem funcionar como o melhor depósito de nosso apetite raivoso. Em suma, se você é um produtor de aberrações televisivas ou apenas um idiota sem nada a dizer com sede de fama, eu lhe agradeço demais pela disposição em receber, ainda que sem saber, tudo o que eu tenho de pior.


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