Folha de S. Paulo


Só quando o bebê der certo

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RIO , Ultrassom do bebe de Claudineia dos Santos Melo, foi baleada na ultima sexta-feira o Bebe sobrevive depois de ser alvejado enquanto ainda estava no útero quando mulher gravida de nove meses e atingida por bala perdida Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
"Bia não suportava mais: pelo menos os avós podiam saber da existência daquele neto tão maravilhoso!"

Bia mostrou o teste de gravidez para o marido e, não se contentando em dividir a notícia com o responsável, fotografou o pequeno display que dizia "2 a 3 semanas" e buscou no celular grupos familiares e de amigos. Foi quando ele segurou seu braço, bastante alarmista: "Não vamos contar pra ninguém até esse bebê dar certo."

O primeiro ultrassom era uma bolha dançante com um coração que batia forte e decidido. Então está vivo, vingou, deu certo? Ah, faltava muita coisa ainda e Bia era obrigada a dizer "tudo igual" quando lhe perguntavam sobre novidades nos almoços, reuniões e elevadores.

Enjoo era "um bom sinal" segundo o médico e Bia saía do banheiro, descabelada e abatida, com a esperança de que aquelas horas entre semidesmaios e juras eternas de "nunca mais engravidarei" tivessem servido para amolecer o marido. Ela olhava pra ele, implorando. Ele apenas balançava negativamente a cabeça.

Meses depois, exames de sangue e um demorado transvaginal diriam a quantas andava o desenvolvimento de pequeninos órgão de poucos centímetros e o resultado foi excelente. Bia se contorcia: "Posso contar agora?". Mas seu marido seguia blindado pela crendice popular "espere até o bebê dar certo".

Cresceram cabelos, unhas e acho que viram até um joinha no último exame de imagem. O bebê cresceu, chutou, virou de ponta cabeça e nasceu com mais de três quilos e meio. Ninguém foi na maternidade, ninguém os visitou em casa. Eles tinham que esperar o bebê dar certo.

Aos cinco anos de idade, Marcelinho já contava histórias completas que ele próprio inventava, percebia quando a mãe estava triste e não desistia até que suas palhaçadas a fizessem gargalhar. Era uma criança que apreciava os legumes, guardava os brinquedos de volta na caixa, pouco chorava e dormia como um anjinho. Bia não suportava mais: pelo menos os avós precisavam saber da existência daquele neto tão maravilhoso! Pelo menos Lia, a irmã de Bia, que estava grávida e toda metida por ser a única a dar um rebento para a família. Mas eles precisavam esperar o bebê dar certo.

Marcelinho passou em primeiro lugar na faculdade de medicina. Se especializou neurologista. Concluiu, ao mesmo tempo, dois doutorados em países diferentes. Se tornou um dos mais respeitados neurocirurgiões do país. Salvou a vida de presidentes e moradores de rua. Deu uma casa com sistema inteligente de luz, som e ar condicionado para os pais. Os presenteou também com iPhones de última geração, para que monitorassem o sistema inteligente com apenas um deslizar de dedos. E dona Beatriz, de joelhos, no dia em que o filho completou 45 anos, pediu encarecidamente a seu esposo: podemos contar para as pessoas da minha gravidez? Ele quase se deixou levar pela dramaticidade do momento, mas achou melhor esperar o bebê dar certo.

Doutor Marcelo tomou a decisão de não conceder mais tantas entrevistas para jornais e programas de televisão, isso lhe roubava o tempo com os pacientes. Conheceu uma pediatra gente fina e decidiram doar aos Médicos Sem Fronteiras todo o dinheiro arrecadado com a lista de casamento. Depois da fertilização, tiveram um casalzinho de gêmeos que era a alegria dos avós. As aulas em Harvard eram cansativas, mas ele fazia questão de levar a família toda de executiva.

Quando o esposo de dona Beatriz faleceu, ela tentou avisar, aos poucos ainda vivos parentes e amigos, que há 50 anos esteve grávida de um bebê que tinha dado certo. Só podia estar gagá.


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