Folha de S. Paulo


Deus abençoe você que flerta com desconhecidos

Bruno Santos/ Folhapress

Você que acorda cedo pra pular Carnaval. Que vai tarde adentro, noite afora. Que espera ansioso para camelar ao sol e ao som de batuques. E no calor e no meio de tanta gente. Que vai da Paulista até a Roosevelt. Que compra parafernálias penosas vibrantes quentes pesadas. Que não mancha com raios UVA e UVB, não tem medo do buço escurecer sem filtro e não protege todas as pintas sinistras das costas com bloqueador. Que bebe e se chacoalha e bebe mais e não vomita nem desmaia com a pressão cinco por dois e tampouco morre. Que pisou em 34 tipos diferentes de urina e nem vai lembrar disso quando entrar em casa com os sapatos. Que tem 78 tipos diferentes de suores brigando por destaque em seus abraços. Que achou graça nas lantejoulas no pinto, parecia que ele tinha olhos. Que senta em privadas de botecos e encosta sem querer a calcinha no vaso e não tem nenhum medo de ebola vaginal assassino.

Deus abençoe você que não tem nenhum remédio controlado no cerebelo. Que goza rápido. Que olha um mar de gente a sua frente, ao lado, pra trás, e não tem a voz na cabeça dizendo "deu merda", "cadê a saída", "deu merda cadê a saída dessa porra?". Que não se imagina pisoteada por foliões e a manchete no dia seguinte "a felicidade alheia lhe esmagou o triste crânio". Deus abençoe seu espírito livre, seus ossos de aço, suas artérias não hipotensas, sua testa não amarrotada por medos.

Deus abençoe você que realmente junta a turma, que tem saco pra gostar de tantos e ao mesmo tempo (e mais os amigos dos amigos que nunca param de chegar). Que sacoleja o bebê no colo, encontra seu ex fantasiado de Beyoncé grávida (no caso dele, de cerveja) e pensa "que sexy!". Deus abençoe você que flerta com desconhecidos e não com a hipoglicemia.

Na manhã de meu aniversário de 35 anos, acordei com dengue. Fui para o hospital, fiz vários exames, não era dengue. Doía a lombar, a cervical, os joelhos. Os olhos ardiam, a garganta raspava, a coluna queria desistir de tudo por horas. Era rim ou mau jeito? Enxaquecas, gastrites, arritmias. Tantos médicos e a mesma sentença: não é nada. Deus abençoe você que não se sente com uma dengue eterna desde que fez 35 anos.

Você que ressignifica o espaço urbano, que reocupa a cidade, você que adora ser o sujeito dessas frases apesar de ter apenas mijado em frente a uma papelaria. Como você leva a sério a sua leveza! Ergue as mãos ao céu, glorificando o lixo abandonado no Centro, as carcaças de gatos mortos, as calças de palhaço mofadas. O mendigão te odeia, mas você, tão do povo, o chama pra dançar. Sim, sua família é aquela desgraça. Tem suicida, louco, vagabundo, racista. Sim, seus amigos, outra maravilha. Tem invejoso, fascista, machista, mentiroso. Mas taí uma coisa que nunca te derrubou: a angústia. O pavor de saber, lá no fundo, que na real (e de forma bem escancarada quando não distraído) tá tudo errado.

Deu onda. Meu pau te ama é a mais bonita frase já inventada. Teve Carnaval aqui na minha rua, você diz. Ejacularam e cagaram na sua porta. Você amou, você é feliz, você é do bem, você fez letras, você usa anel no dedo do pé e saia da vovó. No dia seguinte não lavaram a rua. Daí veio o dia da feira e a soma da fedentina chegou na vizinhança. Você nem sentiu. Você postou foto do seu pé (o mesmo que tem anel) estraçalhado por um caco pontudo. O vidro perfurou sua rasteirinha. Mas ano que vem, se Deus quiser, tem mais! HPV se cura com meditação, vontade de sumir, com florais. Ser você é uma dádiva. Deus te abençoe.


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