Folha de S. Paulo


O escravo gaúcho

Os recém-restaurados tacos originais de 1954 pediam móveis, os móveis revisitados de 1975 recém-chegados pediam almofadas, as almofadas vintage "vibe" de 1920 pediam quadros. Chegou uma hora que não tinha mais nada a ser feito. No entanto, aquela angústia de viagem "o que eu estou esquecendo" a acompanhava por todos os cômodos. Foi quando passaram por baixo da sua porta um catálogo moda praia e ela o viu pela primeira vez: um gaúcho de 1989.

Quando ele acorda, metade das burocracias e chatices do dia já foram solucionadas, mas não pense que sua vida é fácil. Ir até a varanda de cuecas e jogar o restinho da água que estava bebendo numa planta, missão primordial. Estalar as costas soltando um urro másculo e juvenil enquanto, nu, espera a água do chuveiro esquentar, segunda tarefa essencial. Não se secar por completo e "prender" a toalha de forma que "qualquer mísero golpe de ar possa arrancá-la" estava no contrato.

É ordem que ele saia do banho e caminhe esguio e leve até o escritório de sua mandante, com suas sobrancelhas douradas e molhadas. Ele tem uma cicatriz na coxa e ela aperta porque seu "ai" é de uma beleza avassaladora. Não tem mais dor ali, mas tem a memória de uma dor e é muito sexy. Ela aponta a esteira, para que ele corra pelo menos uma hora. Ele sabe que não faz sentido, considerando que acabou de sair do banho e ainda não comeu, mas cantarola feliz enquanto veste um tênis. Um feliz forçado que, pelo hábito, vai se tornando um médio feliz honesto.

Ela gosta de oferecer cinco bons restaurantes pra que ele escolha. Gosta que ele se troque em silêncio, bonito, sem lhe dar trabalho nenhum. Gosta que sua massa magra e roupas ocupem pouco espaço. Toda roupa cai bem no escravo gaúcho e o escravo gaúcho cai bem em todos os cômodos da casa. Ele volta para o escritório e mostra: está prontinho. Ele não incomoda e ainda enfeita a casa. Distraído, ele tem a nuca castigada ao tentar escolher uma música. Ela gosta de escolher o som que vai entrar pela orelha bem desenhada do escravo gaúcho. Gosta de dirigir pelas ruas esburacadas tomando todo o cuidado pra que sua obra de arte, retinha e imóvel no banco do passageiro, não corra riscos. Gosta de esbanjar nos pedidos e, com a palma da mão direita, aquietar a penugem cor de ouro do antebraço esquerdo do escravo gaúcho: "Pede o que quiser". E ele pede muito -com medo que ela perceba que ele, na verdade, quer pouco.

Nas festas, ela o exibe como um colar caro de um designer jovem e maluco. Seus olhos esbugalhados e muito azuis são como pedras preciosas que ela carrega no peito. "Vai lá, conta aquela piadinha. Mas conte alto, grosso, exagerado, firme. Agora pode, porque é pros outros." A primeira vez que ela o convidou pra sair (escolheu dia, hora, lugar e assunto) ele foi com uma camisa errada. Ela pediu que ele a tirasse e ficasse aquela noite. Seguiu então pedindo que ele tirasse tantas camisas erradas e ficasse por tantas noites. Tem dias que fala "hoje é devagarzinho" e ele é romântico. Em outras, pede apertões e ele capricha no "mood" pedreiro. Ele não a incomoda, não faz barulho desnecessário e é muito bonito. A tudo responde sim, com um queixo que deveria estar em revistas segmentadas vendendo relógios caríssimos. Lindo, magro, silencioso e sem dar trabalho. Até que um dia ela vestiu seu colar e ele lhe pareceu, talvez pelo ângulo, talvez pela luz daquela hora, simplório demais. Você quer me largar, não quer? Ele sorriu. Você não me ama mais, certo? Ele assentiu. Então arrasa meu coração. E ele arrasou.


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