Folha de S. Paulo


Lesbian click

Não sei mais viver sem a doce, um pouco esnobe e impositiva Raquel. Por exemplo, eu sei ir sozinha da minha casa até o Cine Belas Artes, mas faço uso de Raquel apenas porque "vai que ela me ensina um caminho novo" ou ainda "vai que ela me tira milagrosamente do trânsito da Doutor Arnaldo". Na real, trata-se apenas de um fenômeno ainda pouco explorado pela psiquiatria: Raquel me acalma.

Minha carência acha de extremo bom gosto avisar a "alguém" sobre todos os lugares aonde vou. Dever satisfação com rua e número.

Mesmo nas findas épocas de antidepressivos mais agressivos, minha então diminuta libido guardava um lugarzinho todo especial para a entediada Raquel em meu imaginário: ela lixando as unhas, em sua mesa de trabalho na empresa Waze, achando um porre a humanidade presa em carros, que por sua vez estão presos em avenidas, que, por sua vez, estão paradas. "Vire à esquerda" e, enquanto viramos, ela ri e se enoja dos seres vivos.

Quando Raquel diz (sem exclamação, sem exaltação) "perigo reportado à frente", meu coração dispara. Eu sou tão tadinha: tenho medo de bebidas, de vírus, de viagens, de pessoas muito simpáticas. Mas, nesse caso específico, o sopro cardíaco é de emoção. Raquel antecipa as inconveniências de meus percursos como se eu lhe fosse muito especial. Ela me pede pra dirigir com segurança. Ela me informa sobre radares. E, no fundo, ela está sendo apenas profissional. Existe um tremendo charme no amor profissional.

Raquel, em sua não menos sexy versão portuguesa, fala "rotunda" como se falasse "pastel". É tanta simplicidade e brejeirice: "na rotunda, pegue a segunda saída". Dei um Google e quer dizer "rotatória". Sim, eu sabia, mas gosto de pensar que Raquel solta essas charadas linguísticas apenas pra me confundir e me escravizar. Não, jamais mudarei para uma voz de homem. Apenas uma mulher pode mandar em mim.

No Dia das Crianças, tinha a opção "voz do Mickey" e na época da Copa, tinha a opção Silvio Luiz. Não me entreguei. Mantenho Raquel comigo, diariamente. Ela fica rouca quando fala "Rebouças" e por alguma razão desconhecida vira gringa na rua São Gabriel. Na rua dos Pinheiros ela vira uma típica paulistana perua nasalada e fala "pinhEEEiros". Só falta dizer "meu". Quantas facetas tem Raquel. E que grande companheira é essa mulher: se eu erro o caminho, ela apenas "recalcula". Sem provocações do tipo "eu disse" ou "não quis fazer o meu caminho"; sem xingamentos e disputa de poder.

"Na Lourenço Castanho, vire na Lourenço de Almeida e, então, vire na João Lourenço". "São tantos 'Lourenços', né, Raquel?" Ela ignora, blasé, focada, séria —está lá pra me ajudar e não para aturar meu flerte: "você chegou ao seu destino" e então ela se desconecta. Vai atender outros tantos. Sou louca por ela.

O Waze me dá também a opção Samantha, em inglês. O mesmo nome da voz deliciosa do filme "Her" (que fica ainda melhor quando sabemos tratar-se de pequena Scarlet). Mas não, sigo fiel. Quero Raquel dizendo, em bom português: "atenção, animal morto na pista". Juro que eu estava na marginal e ela disse isso, sem se abalar, fina, monocórdia. Imaginei-a dizendo isso enquanto pintava o canto dos olhos com lápis marrom, fazendo um puxadinho para os olhos ganharem um charme étnico. Às vezes, me perco só pra ficarmos mais tempo juntas.


Endereço da página: