Folha de S. Paulo


O amor se veste mal

Tenho em meu celular uma foto que me enche de ternura. Trata-se de meu namorado usando, de uma só vez: uma ceroula, uma bermuda de correr com um furo, meias de lãs puídas e um moletom bege com desenhos de pequenas flores roxas. Ele dorme assim quando faz frio e eu não poderia sentir mais amor.

Quando fico nervosa pra andar de avião ou quando estou prestes a gritar de tédio numa reunião chata, olho alguns segundos para a foto. Ele me encara orgulhoso em seu modelito mendigo, com a segurança dos rapazes de ombros largos que foram suficientemente amados pela mãe.

Hoje estou mal. A boca amarga me informa que é fígado, as cólicas me informam que é intestino, os elevadores de pressão me informam que são gases e o que dói mesmo é a boca do meu estômago. Já tomei todos os chás que o Google mandou, já chupei todas as pastilhas antiácidas que eu tinha no banheiro e estou desde sexta dormindo de conchinha com o Omeprazol. Nada resolve.

Como sei que minha complexa enfermidade não passa de uma crônica afliceta, resolvi chorar longa e profundamente, de modo a extirpar o veneno de meu desarranjo por todos os buracos da face. Para tal, coloquei meu uniforme da depressão. Moletom felpudo de 2004 e um cashmere pink que de tanto ser usado parece um algodão doce depenado por crianças agressivas e mimadas.

Não contente, me cobri com uma manta vermelha que está fedendo a gel para dores musculares e finalizei o bom gosto abraçando minha "bolsa de água quente" em forma de coruja amiga. Você coloca a coruja no microondas e quando a casa inteira estiver fedendo a pum de camomila, a bolsa está pronta.

Ele acaba de parar no meio da sala com seu outfit mendigão do amor. Me olhou inchada de tanto chorar e com a roupa mais ridícula do armário e ficou com tesão. Também fiquei excitada, pois vi que ele lançou moda: está com a ceroula sem as meias. Será que a gente transa? Ah, eu tô com dor. Então vamos ver um filme. Ou melhor: dormir vendo um filme. É a primeira vez na vida que amar me acalma e torna o mundo um lugar quentinho e bom.

Às vezes, olhando para vestidos curtos e botas bico fino, eu tenho saudade de me vestir como uma fêmea predadora da noite e caçar testosteronas pela cidade. Então eu conto um, dois, três. E passa. Eu demorei mil vidas mas aprendi a delicia que é uma relação com ácido para manchas na bochecha, roupa feia, dor de barriga e ceroula.

Minha cachorra percebe nossa molambenta e discreta sintonia e encosta as patinhas em mim e o focinho nele. Ela quer ter certeza que, mesmo com seu pequeno corpo, está dando conta de agradecer aos dois.


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