Folha de S. Paulo


Fezes e sangue

Sou 1034. Aviso que não preciso passar pelas atendentes, só vim deixar minhas fezes. É cocô, não precisa burocracia. "Tem que aguardar, senhora". O número está em 1025. São nove pessoas na minha frente. Cada uma demora cerca de cinco minutos. São então quarenta e cinco minutos segurando, na frente dos outros, com aparente normalidade e uma certa confiança, minha bosta. Me sinto naquele pesadelo recorrente: eu com uns dez anos de idade, no meio do pátio da escola, com as calças arriadas e sentada numa privada. Na hora do recreio.

Logo mais, tenho um almoço com intenções sexuais. Para tal, uso saia curta, meia calça fina e botinha de couro cano baixo. Estou também com minha echarpe de seda que é puro fetiche. Tenho os olhos pintados e uso meu perfume Molecule O1, uma novidade londrina que promete tornar os feromônios de qualquer civil tão atraentes quanto os de Gisele, a Bündchen. Resumindo: em nada orno com um pacotinho ensacado de merda quente.

É mostrar minha carteirinha do plano, assinar alguma coisa e abandonar meus dejetos ali mesmo. E então, lupas mágicas dirão se o profundo mal estar que tive há alguns dias foi apenas cansaço ou alguma bactéria maligna. Apita o 1030. Falta pouco. Só quero que acabe logo essa manhã: ser encarada em porte do próprio esgoto ensacado é ainda mais humilhante quando ninguém está rindo.

Chega um casal qualquer. Estou trocando mensagens safadinhas pelo celular e não presto atenção nos dois. Mas eles, talvez por conta de minha exagerada performance estética para um laboratório, prestam muita atenção em mim. O homem faz tanto barulho tilintando os dedos em sua pasta de couro que sou obrigada a notá-lo.

Hoje coroa charmoso, sua coluna arredondada entrega que ele já foi um banana e, certamente, o mais fraco da relação. Isso fica ainda mais nítido na melancolia escura das olheiras da mulher: "esse desgraçado já foi louco por mim".

Ao ver que ela me fuzila com olhos bondosos, travo uma conversa telepática. Veja, minha senhora: no fundo o que importa são as frutas limpas e cortadas. Você as limpa e corta ou dá ordens para que assim o faça a empregada? Elas descansam alegres na geladeira à espreita dos momentos tediosos de seu marido? Todo homem precisa de um docinho saudável pra enganar os reais desejos de uma noite. Se sim, você venceu.

Existe um universo de garotas mais jovens, mais bonitas, mais inteligentes e mais divertidas que você. Todo um universo de fêmeas cheias de perguntas enquanto você acredita que a resposta é apenas ciceronear genes unidos pelos filhos e pelos corredores dos anos.

Mas não sofra: o mundo ainda é seu. As garotas de hoje só cuidam mesmo é de prolongar o próprio colágeno. Mimar marido é uma lição que se extinguiu nas últimas décadas. Existe um planeta com micos leões dourados e esposas que sabem o poder reconciliatório de um bolo de fubá.

Por isso, fique em paz: depois de duas ou três comparecidas em jovens de peles firmes, eles morrem de saudade é da frutose docemente cortada em cubos que os espera em casa. Se você sabe de cor o número do colesterol de seu cônjuge e do telefone do feirante que entrega orgânicos em casa, saiba que seu casamento não corre riscos. As bundas redondinhas e duras não podem nada contra a sua milenar devoção maternal.

O terno está bem ajustado ao corpo, as calças não têm pregas, seu pulso não carrega um daqueles relógios esportes enormes tão deselegantes, o homem me parece tão importante que eu não sei como ele não mandou a secretária vir excretar em seu lugar. Enfim, o poder de um homem ainda é muito afrodisíaco mesmo num mundo cada vez mais tomado por sociólogas e as mocinhas, mesmo achando que são gases, sentem algo quando ele passa.

Sim, ele já deve ter degustado com excitante culpa algumas dessas sonsas deslumbradas. Sim, ele está me olhando descaradamente e eu no seu lugar já teria feito um escândalo, ido embora, pegado no pau do enfermeiro.

Você não vai dizer nada. Vai continuar acariciando os braços do seu homem como se fosse uma náufraga agarrada a um toco de madeira podre. Porque da mesma forma que eu não consigo imaginar minha vida ao lado de um homem que cobra, em tenso silêncio julgador, uma feminilidade que se oferta na forma de mangas defloradas, você não consegue imaginar a sua longe dele e da faca que prepara amorosamente o deleite de um eterno rebento. Não somos diferentes, apenas igualmente viciadas em estilos opostos de sobreviver.

O número da esposa foi chamado ao mesmo tempo que o meu. Era sangue o que ela daria.


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