Folha de S. Paulo


Você tem que prometer não escrever sobre isso

Sonhei que você me criticava enquanto eu mordia a carne que "margeia" as suas escápulas. Você começava a reclamar de dor na lombar, por algum cansaço da semana, e deitava no chão. Eu então usava todo o peso do meu corpo e pulava em cima do seu sacro. Você ficava quieto, pra não me deixar ganhar. E eu queria rir mas não ria, pra não te deixar ganhar.

Será mesmo que eu falo "memo" quando falo rápido? Você tragou olhando por cima dos meus cílios e disse "você falou: eu memo nunca fui lá". Eu jamais falaria "memo". Então você baforou olhando por cima do meu ombro esquerdo, que é mais alto que o direito por um problema de desalinhamento na coluna, e disse "você falou: mai eu que não sou trouxa de ir lá". Eu jamais falaria "mai eu". Combinamos que você ressoaria um alarme maldito cada vez que meu português ou minhas piadas ou minha persona "adolescente da Mooca" (que sempre aparece quando estou nervosa) não lhe agradassem. E você parecia um trem desgovernado apitando histericamente avisando que partiria.

Você sujou sua meia branca de tanto andar pela casa tentando fazer algo que não fosse ficar perto de mim. Até que seu joelho, o único sincero em seu corpo, estalou exaurido e se arrastou pra perto. Você queria mexer nos meus cabelos, mas achou mais elegante usar as pontas duplas da minha franja lateral para chicotear meus olhos. Eu ia encostar minha cabeça na sua perna e fechar os olhos quando você arrotou algo sobre a obviedade da rara existência de sentimentos puros na vida adulta.

"Você tem que prometer não escrever sobre isso", você disse, comendo salmão cru em um bar especializado em bolinho frito de carne. Você disse, me mostrando suas cadeiras caríssimas de designer: "cuidado, você está com fama de burguesa e isso não é bom no meio literário". Você disse, totalmente pendente pra frente, com seus ossos da bacia apontados como dedos em riste para o meu decote exagerado, que não estava interessado em mim.

Seus ombros largos anunciam suas decisões com a certeza neon dos outdoors de motel. "Eu não vou desviar os olhos, pode continuar me provocando". E eu continuei e você não desviou. E eu continuei e você não desviou. Até que a conta, a pausa dramática da burocracia, nos trouxe de volta aos quatro pés da mesa quadrada.

Você me deixou sair na frente. Eu empinei a bunda porque sabia que você estava olhando. Você desviou os olhos da minha bunda porque sabia que eu ia olhar pra ver se você estava olhando. Eu não olhei pra trás porque eu sabia que seus olhos estariam desviados porque era esperado que eu olhasse pra trás pra ver se você estava olhando. E, por fim, você olhou pra minha bunda porque sabia que eu não olharia pra ver se você estava olhando porque seria muito óbvio. Acho que em nome disso tudo, eu nem empinei minha bunda. Você jamais olhou. Se bobear, eu nem sai na frente. Como é difícil um primeiro encontro.

Você chamou nosso beijo de "um teste pra ver se tem futuro" e deu nota oito e setenta e cinco. Eu perdoei sua chatice de professor de geografia corrigindo uma prova de bacias hidrográficas. Você segurou minha mão e disse: "não sou esse tipo de cara que segura mão". Eu prometi não escrever sobre isso.


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