Folha de S. Paulo


Fofura e ódio

Ele tem uma bermuda rasgada. Ele tem saudades do cachorro que rasgou a sua bermuda. Eu amo a bermuda porque ele ama a bermuda. Ele dorme comigo e com a bermuda todas as noites. É estranho e novo gostar dentro de frases simples e organizadas. Com ele, meu cérebro opera na clareza solar de uma apostila de inglês do básico 1. Sem enjôos e faltas de ar. Ao invés de cortar os pulsos (o que nunca aconteceu) agora corto cenouras pra sopa (mentira, tenho preguiça de cozinhar).

Tenho particular antipatiazinha por esse café na Vila Madalena que é tipo um "laboratório de café". Os atendentes usam aquele uniforme "somos gênios cientistas do café, você é só um civil" e se você pede "um café" te olham como se você fosse uma anta vesga cagada com ebola. Você tem que entender que ali é mais do que "um café". Ninguém está ali pra te servir, eles estão ali pra operar a máquina maravilhosa do futuro celestial do café e, porque são legais, deixarem você assistir. Você tem que pedir em pé, implorando por um pouco de atenção dos artistas blasé do maravilhoso grão magia. Avátomanomeiodaraba é só a porra de um café com
bolo na Vila Madalena!

Quarta é o único dia que não dormimos juntos. Ele assiste futebol com os amigos e eu encho minha cara de Hipoglós e uso meu aparelho para dentes. Uma vez por semana ele traz novas camisetas e bermudas e cuecas. Todas num saquinho de supermercado. Pra sacanear eu pergunto "o que é isso?". E ele resmunga, fazendo graça: "não é da sua conta".

Ando obcecada pelos fofos. Fotinho com a mãozinha no queixo, amigos do sarau e muita noção de cidadania. "Mais amor por favor" escrito em seu Facebook e pichado na parede do seu bar preferido. Nada contra eles até que, outro dia, um fofo me escreveu: "você, como cronista, tem o dever de educar as pessoas". Putz, ele me confundiu com a mãe de uma criança levada ou com a professora de moral e cívica do primário. Impressionante como tem gente chata e sem graça no mundo. Saudades dos seios da Xuxa em capa de disco infantil e do Mussum falando em vagabundagem e alcoolismo num programa "para toda a família".

De manhã ele bate no liquidificador banana com leite e aveia. Só consegue conversar depois de beber um copo dessa vitamina e só consegue beber depois de rondar e encarar o copo por doze minutos. Eu e minha cachorra "sentamos" no sofá e ficamos observando a paquera tímida entre um homem e um copo de leite. E sorrimos. Eu sorrio, ela apenas amassa seu bigode na almofada (o que é muito parecido com um sorriso).

A fofura, quando missão, é a crueldade velada. O fofo unilateral é o escroto mais hipócrita que existe. O bonzinho, quando meta, é o ego gigante falso abdicado. Quero fazer uma passeata contra o fofo sem tridimensionalidade. Os "bate cartão da fofura" dividiram o mundo entre "gente escrota egoísta má que não se importa e faz piada" e eles que defendem baleias, amam seus gatos, não dormem pensando em alguma cidade da Ásia e usam bordado. Estamos vivendo uma época chatérrima com opiniões extremadas e com dedos hipócritas apontados. Uma época com joanetes desnudados em alguma praia com bastante fotógrafo e BUM os joanetes viram o símbolo máximo da luta contra qualquer coisa. Tirando os fofos engajados, todo o resto da humanidade é omisso, cruel ou desgraçado. Quanta bondade!

Aos poucos ele cede mais e mais centímetros do seu mundo quieto pra minha falação em quilômetros. Eu libero mais umas gavetas e mais uns cantos no armário. Não falamos nada mas damos um beijinho comemorativo de "estamos indo bem".

Fui ao show do Woodkid sábado. Lá estavam as garotas que usam os óculos da avó como crachá para pertencer ao fabuloso mundo das pessoas que...das pessoas que...sei lá, trabalham com designer ou internet. Qual é a dessa moda com pessoas vestidas de comprimidos de amoxicilina? Calças pink neon "mamãe não me perca na neblina", típicas de night biker, já podem ser usadas pra um casamento, por exemplo. Aliás, por falar neles: night bikers, vamos combinar, são maravilhosas pessoas comuns a fim de andar de bicicleta, na madruga, com amigos. Não são heróis contra os demônios de Tucson que correm pra chegar a tempo de ver o Jornal Nacional. Os bikers são mais legais que os tucsons, concordo, mas é só uma bicicleta, não é um cavalo branco.

Mas voltando ao Woodkid, fiquei impressionada com a devoção de seus fãs. Alguns se ajoelhavam, outros espalmavam a mão no ar como se ouvissem um deus com grande poder de oratória. Como disse um grande amigo que estava comigo: as pessoas precisam desesperadamente de heróis. Por isso bicicletas e "joanetes desnudados contra qualquer coisa" são melhores do que você aí, uma pessoa qualquer que, apesar de querer um mundo melhor, também tem inveja, frieira e uma bolsa de marca. Mas voltando ao Woodkid de novo, é uma mistura de Coldplay com Olodum com trilha de minissérie sobre a Guerra de Farrapos com Fuerza Bruta com trilha de filme de super herói com DJs do The Edge, ou seja: zzzzzz. No final da noite, conheci um cara que se "auto-intitulava" cachacier. Taí uma coisa mais chata do que ser fofo.

Minha avó era portuguesa e tinha uma boca suja maravilhosa. Ela nunca ficava doente porque tinha um trato com Deus: "nunca dizer a palavra preguiça". Lavava o quintal todo dia de botinhas, esbravejando contra quem enchesse seu saco. Sempre usando palavrões portugueses maravilhosos que ela mesma inventava: "vai morder a mãe na cona" e "caganita do caralho". Meu avô era italiano e, por prescrição médica, só fumava aos domingos. Odiava todo tipo de visita de todo tipo de ser humano. Só gostava de mim e escondia sempre as melhores comidas para quando eu chegasse da escola. Ele também esquentava minhas meias suadas atrás da televisão para eu não "me resfriar". Sempre usava palavrões lindos tais quais "me cago o cazzo", "stronza" e o clássico dos clássicos "vá te encher de merda". Meus avós se chamavam de "chico" e "chica" e se amaram e se xingaram dos 12 aos 75 anos. Fofura e ódio, como pessoas normais e reais devem ser.


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