Folha de S. Paulo


Fantasias de uma manhã quente

O garoto olha para meus peitos e o homem para a minha bunda. O garoto boceja encarando meus peitos, exercendo sua macheza intrusa com desdém.

"Se eu escolhi, lá no céu, ter tetas, deve ser porque preciso de garotos com essa cara de idiota invadindo minha existência, certo? Garoto, eu estou apenas com fome. Sete da manhã tenho ainda mais fome que dez ou onze. É a fome pura de quem acordou na hora certa e não enjoada de quem já começou o dia todo errado. Vou comer sem tempo e sem modos. Caguei em lhe parecer sexy. Esse blusinha de alcinha sem sutiã é porque eu dormi com essa roupa e não me arrumei pra vir até aqui. Não foi pensando em você que coloquei essa roupa. Ser mulher não significa agradá-lo. Não foi pra descolar um macho que vim de pijama pra padaria. Apenas está um calor desgraçado e eu estou sem tempo. Odeio parecer sexy pra qualquer indivíduo do planeta a não ser que eu queira transar com ele. Odeio olhares de cabeças latejantes de pau se não conduzi ou escolhi ou aceitei essa cena. Sedução fora de contexto me parece um nariz no meio da testa. Quero comer sem modos esse pão. Deixar cair farelo no meu decote e cutucar meu problema de oclusão até sair sangue. Não serei feminina com tamanha fome, pressa e calor. Me irrita mulher com salto alto na ponte aérea porque a ponte aérea foi feita pra camelos sem amor próprio. Me irritam unhas grandes porque lá embaixo tem sujeira. Só consegue ser mulher em meio a esse caos quem se esforça muito ou desistiu. Estou com uma coceira no dedo do pé e eu deveria ver isso mas essa semana estou ocupada todos os dias e todas as horas. É só fungo. São apenas seios. Não acordei querendo ser mulher mas, ainda assim, tenho que continuar sendo. Então me ajude, por favor, ignorando esse fato".

O homem franze a nuca peluda pra olhar meu rastro, enquanto limpa o canto da boca com um pedaço rasgado de papel.

"Cara, tô vendo uma aliança nesse seu dedo gordo e peludo. Já brinquei de ser amante. Jovens são entediadas e, como ainda não sabem ser mulher, querem o lugar de uma. Mas peguei nojo de homens como você. Com seu olhar enternecido por qualquer coisa que se mova para além das suas demarcações de urina. Você deve ter deixado uns pentelhos no sabonete da Martinha e agora quer convencer alguém, enquanto limpa esse canto de boca suja, que é livre. Eu estou apenas tentando comer um pão estupidamente cheio de requeijão. Não me falta nada que seu mundo masculino e adulto possa oferecer. Sou mais homem e mais adulto que você. E provavelmente ganho mais.".

Na fila do caixa, enquanto eu me contorço de vontade de chegar logo em casa, um tipinho "trabalho de camiseta porque sou engraçadinho e tenho barba porque sei que Murakami tá na moda mas ainda não tive tempo" puxa papo: "quente, né?".

"Eu comi dois pães na chapa com muito requeijão e um iogurte batido com chocolate. Em suma: preciso cagar. Está calor e eu estava dormindo. Por isso estou vestida assim. Não quero fazer nem sexo e nem amigos. Não quero ser sexy ou feminina. Infelizmente, acordei mulher pra você. Mas, pra mim, acordei atrasada e faminta e suada. Adoraria estar agora, em casa, lendo jornal e cagando. Coisa que você não deve fazer com muita frequência. Você tem cara de quem lê e caga pouco.

Na volta pra casa, um motoboy buzina pra mim, faz cara de tara louca e grunhe algo.

"Pegue no meu pau, animal".


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