Folha de S. Paulo


Bullying, seu lindo

Foram infinitos anos acordando com dor de barriga e odiando ir pra escola. Em meio a bailarinas misteriosas e safadas infanto juvenis com corpo de mulher, eu era a magrela dentuça de óculos e rodamoinho na franja.

Tentava de tudo pra chamar a atenção. Uma vez peguei o estojo de maquiagem da minha mãe e engrossei minha sobrancelha com lápis preto até ficar "parecida" com a Malu Mader. Fui pra aula crente que ia abafar mas levei uma esguichada de toddynho nos olhos.

Comecei a fazer balé pra ter a postura, a bunda, a nuca, o cabelo liso e os olhos claros das meninas mais "famosas" do colégio. Crente que estava me entregando a uma dança contemporânea abstrata, fechei os olhos e sai pulando como um coelho esquizofrênico que tomou ácido e achou que era um canguru com asas. Despertei com o riso descontrolado da professora que me aconselhou a fazer fisioterapia.

Um dia me irritei e fui sem uniforme pra escola. Com uma camiseta amarela cheia de rajadas azuladas em silk. Lembro até do cheiro do meu cabelo nesse dia: perfume Absinto. Achei que mostraria ao mundo como eu era especial mas fui levada à diretoria.

Dona Dalva queria que um adulto responsável viesse me trazer um uniforme ou comprasse na lojinha da escola. Era isso ou eu teria de ir embora sem fazer a prova. Inventei que meus pais tinham viajado "à negócios" sem data de retorno e que eu morava com avós doentes que não podiam se estressar. Ao que concluí: por conta do caos desestruturado de minha vida, meu uniforme não havia secado. Tive dois dias de suspensão.

Só o Luiz sofria mais do que eu. Luiz era um gordinho da minha classe que, sem saber ser engraçado, era apenas gordinho. Vinte anos depois encontrei ele no shopping Villa Lobos.

Magro, casado, de terno. Nos cumprimentamos como heróis de guerra. Éramos sobreviventes de um combate cruel, ambos mancos de orgulho, com pinos nos joelhos da vaidade.

Eu tinha acesso ao QG das celebridades do recreio por duas ou três "amigas" populares que adoravam meus conselhos amorosos. "Ele disse que não queria mais namorar comigo, o que eu faço?" "Olha, Pri, você espera cinco dias e fala que namorar talvez seja uma palavra pesada mas você topa tentar aos poucos". Elas anotavam no diário e me achavam um gênio.

Minha última tentativa de ser aclamada (depois de tantos anos sofrendo não me contentaria mais em ser apenas vista) foi numa festa de final de ano da quinta série. Eu havia ensaiado, sozinha, no banheiro de casa, uma apresentação de meia hora na qual eu imitaria todos os meus professores. Tinha a professora Áurea de álgebra que rebolava com o giz na mão pra explicar uma dízima periódica. Tinha o professor Cláudio de ciências que fazia cara de planária pra explicar as doenças que poderíamos pegar dos porcos. Até hoje não entendo pra que eu estudei as doenças que eu poderia pegar de um porco.

Lembro das pessoas (professores, pais, alunos, diretores) me aplaudindo em pé e do meu coração esmagando as amígdalas. Eu sai rindo nas fotos mas era apenas o resultado de um maxilar trincado para não parir meu peito pela boca.

Mas mudar mesmo, minha vida só mudou depois das férias de julho da oitava série. Eu menstruei e voltei pras aulas com o número do sutiã cinco vezes maior.

Em agosto eu já tinha uns três namoradinhos que não saiam do portão da minha casa. Meu avô não se conformava "tá muito curto o short dessa menina, que que vão pensar?". Então era só ter peitos e bunda e pronto? Foi minha primeira decepção com a felicidade. Ela era simples e burra como aquelas pessoas que me esnobavam.

A verdade é que eu tinha tomado gosto pela melancolia e, aos quinze anos, era tarde demais pra ser aceita. Pra sempre, guardada na gaveta mais emperrada do armário dos meus traumas, eu seria a criança invisível que precisa se esforçar muito pra provar que existe.

As escolas, os pais e os terapeutas debatem tanto os malefícios do bullying mas eu não vejo ninguém falar sobre a importância dele. Todo o amor que ganhei da minha família não fizeram por mim metade do que aquelas crianças lindas, ricas, dançarinas, felizes e cruéis fizeram.


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