Folha de S. Paulo


Luto em vida

Como já escrevi aqui antes, o luto é o processo de convencimento do cérebro de que todas as expectativas que envolvem uma pessoa querida não se realizarão mais. Em geral, o luto é póstumo. Mas às vezes, tristemente, é um processo que acontece ainda em vida.

Luto em vida é o que faz a família de quem sofre de alzheimer e outras demências semelhantes.

Como as primeiras regiões do cérebro a serem mais afetadas, perdendo sinapses e neurônios, incluem o hipocampo, região necessária para a formação de novas associações, primeiro se vai a memória recente: o registro do que se comeu no café da manhã, do que se fez ontem, do jogo que acabou de passar na televisão.

Depois, conforme a degeneração se agrava e se espalha para outras regiões do córtex cerebral, vão-se memórias cada vez mais distantes: do endereço de casa, dos amigos recentes e, por fim, dos próprios filhos.

Aqui começa o luto em vida: quando a família precisa se convencer de que aquela pessoa não mais habita seu corpo ainda vivo. O aspecto misericordioso da doença é que, passados os estágios iniciais, o próprio doente não tem mais ciência do seu estado: ele vive num fluxo constante de confabulação, conforme seu cérebro conjura histórias com os elementos mais acessíveis.

Contestar declarações absurdas como "eu tive um cachorro como o que aparece na televisão" ou "você não é minha filha, onde está minha filha?" torna o convívio ainda mais sofrido –e para os dois lados.

Inesperadamente, um casal de atores nos EUA descobriu um jeito de amenizar esse sofrimento dos dois lados, ao lidar com sua própria idosa doente, usando uma técnica de... teatro de improviso.

A base do improviso é jamais dizer "não". Um lado nunca contesta o outro. A regra é entrar no jogo, mesmo que a proposta seja impossível. "Então a cadela Lassie era da senhora? Que máximo, como ela era?" é um exemplo fácil.

É mais difícil entrar no jogo quando é preciso negar que a filha é você e dizer que a filha real saiu e mandou você em seu lugar. Mas talvez ainda ganhe da alternativa. No mínimo, tem uma vantagem. Além de não irritar e confundir ainda mais a pessoa demenciada, ajuda quem fica a criar uma nova relação com a pessoa desmemoriada que agora habita aquele corpo e fazer o luto em vida da mente que se foi.


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