Folha de S. Paulo


A linha nada fina entre melhoramento pessoal e eugenia

Assim como o mau uso da tecnologia não deveria depor contra tecnologias e o que elas podem contribuir para uma vida melhor, o mau uso da ciência não pode denegrir a imagem da ciência.

Mas infelizmente há quem deturpe uma e outra a serviço de suas ideologias –e, para meu espanto, acabo de ver um jovem cientista suíço propor, em uma palestra em um festival de ciência para o público leigo em seu país, que ciência e tecnologia sejam usadas em massa para o "melhoramento da virtude da espécie humana."

Por um instante, pensei que fosse pegadinha para ver até quando o público aguentaria calado, já que o tema do festival era justamente pensamento crítico. "Mas se isso é sério, é eugenia!", comentei com o especialista do Comitê Europeu de Ética, sentado ao meu lado, tão chocado quanto eu. O organizador, surpreso com o palestrante que substituía outro de improviso, veio nos suplicar que confrontássemos o rapaz em público.

O que o jovem filósofo no palco defendia e chamava de "engenharia da virtude", citando todos os nomes certos de pesquisadores da neurociência moral e emocional como "base", é o uso em massa da modificação genética, da seleção de embriões e da manipulação farmacológica, com substâncias como oxitocina, sobre toda a sociedade, para "promover o altruísmo, a sociabilidade, a empatia em nossa espécie". Em suma: para tornar nossa espécie "melhor, com menos variabilidade".

Soa familiar? Hitler e seus "cientistas" foram craques no assunto. Mas o jovem propõe que uma sociedade tornada mais empática e altruísta só pode ser uma coisa boa, não?

Não. Não quando ela é um ideal pessoal, e sobretudo não se esse ideal for imposto sobre indivíduos à sua revelia, como a espécie ariana "superior" que Hitler almejava. Essa é a diferença nada sutil entre o melhoramento individual, que tantos de nós buscamos com educação e remédios para corrigir doenças e deficiências, e o uso impositivo de modificação genética e manipulação farmacológica para "melhorar a espécie". Por mais atraente que soe o ideal de uma sociedade mais pacífica e amigável, uma de nossas maiores riquezas é a diversidade –além da liberdade pessoal.

Nossos protestos e tentativas de conversa foram inúteis; o jovem está convencido de que sua causa é nobre. Ao menos ele não é um perigo muito grande: a eugenia, ainda bem, é crime na Suíça.


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