Folha de S. Paulo


Apesar do medo

Quase todo mundo tem medo do mar (ou diz que tem "muito respeito" por ele). E quem não tem deveria ter: ondas apenas modestas já são suficientes para afogar, jogar contra rochedos, esfolar em recifes ou levar à exaustão mesmo os melhores nadadores. Alguns, prudentes, escolhem então ficar na beira da água, aonde só chegam as marolinhas inofensivas.

Outros, como o pernambucano Carlos Burle, resolvem que não só querem as ondas como querem deslizar por cima delas --de preferência, por cima das gigantes, de 20 m de altura. Surfar ondas gigantes se tornou a grande especialidade desse brasileiro apesar do seu medo do mar. E como vencer o medo?

Tive a oportunidade de entrevistar Burle para meu programa, "Cerebrando" (tvciencia.net), e ouvir o que acontece quando se resolve encarar uma muralha d'água.

Primeiro vêm os anos de preparo. Decidir surfar a onda gigante apesar do medo que ela inspira depende de uma sensação de controle da situação que só se conquista à força de muita técnica e prática.

Segundo, é preciso equilíbrio, tanto em cima da prancha quanto dentro da cabeça. Sem a capacidade de não se deixar dominar pela emoção, não há como vencer o medo e partir para o ataque.

Aqui a neurociência dá o seu pitaco: um estudo recente mostrou que a coragem não é a ausência do medo, e sim o controle que permite a ação apesar do medo. Isso é função de uma parte do córtex na parte da frente da cabeça, o córtex subgenual, que suprime a influência do medo sem reduzir sua percepção.

Dá para imaginar como os anos de treino, levando à sensação de capacidade e controle, ajudam a aumentar a coragem.

E terceiro, quando já se está na onda: foco. Esse é o "flow", aquele estado mágico conhecido de músicos e atletas de elite no auge do desempenho. É um estado prazeroso de concentração absoluta onde nada mais existe, acompanhado curiosamente de uma facilidade de tomar pequenas decisões fundamentais que, graças a toda a experiência anterior, vêm à mente automaticamente, sem esforço.

Dominar o medo é um espetáculo que se desenrola dentro do cérebro do surfista --e quem não tem coragem para isso pode assistir ao espetáculo da segurança da praia. Não é nenhuma vergonha ter medo do mar. Como Burle bem diz, é o medo que o mantém vivo.


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