Folha de S. Paulo


Comer cocô é hábito de 16% dos cães e pode ser gula ou herança genética

Rodrigo Fortes

É fato de conhecimento para lá de público: muitos cães encaram as próprias fezes (e a dos amiguinhos) como verdadeiras iguarias.

O motivo disso, no entanto, segue sendo um mistério científico.

E é daqueles que nos atordoam, porque nos consultórios veterinários não há uma única semana sequer em que não apareça alguém perguntando por que isso acontece.

Pesquisadores da Universidade da Califórnia decidiram ir atrás de respostas. Primeiro, tentaram entender a dimensão do problema e ouviram quase 3.000 donos de cães. Deles, 16% disseram ver o cachorro da casa comer fezes todos os dias (62%) ou ao menos uma vez por semana (38%). Com um detalhes: a maioria ingere fezes frescas (eca!).

Em seguida, o grupo traçou o perfil desses cães e não achou entre eles nenhuma semelhança de raça, sexo, idade, dieta, treinamento ou condições de vida (prévias e atuais) que pudesse explicar o hábito.

A conclusão coloca em xeque as hipóteses até hoje mais aceitas para explicar a coprofagia (nome técnico para o hábito de ingerir fezes).

Uma delas é a de que cães de rua, aos quais faltou alimento em algum momento da vida, vêem nas fezes uma alternativa de sobrevivência. Entre os 16% coprofágicos não havia, no entanto, nenhuma prevalência de cães com histórico de privação nutricional.

Outra teoria que fica na corda bamba é a da coprofagia como resultado de ansiedade e estresse. A pesquisa achou cães com alterações de ansiedade que não comem fezes, e cães tranquilos que roubam e escondem o cocô para comer mais tarde.

Por fim, cai por terra a tese de que eles comem cocô como resultado de uma espécie de ruído de comunicação –porque levam bronca quando fazem sujeira, querem agradar os donos evitando que tenham trabalho ou querem copiar o comportamento dos donos (que recolhem as fezes e, assim, somem com elas). Mas fica difícil explicar como animais muito bem adestrados, e que quase falam com seus humanos, só não entendem o recado quando o assunto é o cocô e também apresentam coprofagia.

A única semelhança que os pesquisadores encontraram entre os comedores de cocô é que eles são, em geral, cães gulosos. Mas eu disse em geral. Ainda assim, a característica não está presente em 100% dos casos.

Diante da falta de respostas, a tese que ainda para em pé joga as raízes do problema para muitos milhares de anos atrás.

Os lobos têm o hábito de defecar longe dos locais onde eles dormem. Mas se um lobo doente ou idoso não consegue se deslocar e defeca dentro da área de descanso da matilha, os demais ingerem rapidamente essa fezes (frescas, portanto), supostamente para manter o local limpo e evitar que ovos de parasitas eclodam nesse substrato.

Por esse raciocínio, comer cocô seria, para os cães, uma herança genética ancestral. Mas é preciso deixar claro: não há provas dessa teoria. A única evidência a seu favor é o fato de o raciocínio fazer algum sentido.

A pior notícia, porém, ainda está por vir: os pesquisadores perceberam que aditivos alimentares e pílulas que prometem dar gosto ruim às fezes resolveram o problema em apenas 2% dos casos.

Ou seja: voltamos à estaca zero. Eles comem cocô, e nós ainda não sabemos como mudar isso.

Aliás, será que temos que tentar mudar isso?

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A coluna "Bichos" é publicada aos domingos, semanalmente, na revista sãopaulo.


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