Folha de S. Paulo


Silêncio felino

O telefone tocou tarde naquela noite. Dificilmente seria para boas notícias. Do outro lado da linha, Xu se dizia preocupada com Miau.

Xu é uma amiga de longa data. Ganhou o apelido quando eu estava com dengue e ela se mudou para o sofá da minha casa. Moribunda em minha cama, eu ouvia, à distância, ela conversar com Mel Katita, minha dominante vira-lata: "Cachuna, por favor, deixa eu dormir". E Mel, eu soube depois, rosnava, instalada sobre seu travesseiro, impedindo que ela se deitasse. Foi assim que Paloma virou Cachuna e, com o tempo, Xu.

Naquela noite, ela dizia que Miau, seu gato de cinco anos, estava estranho. No mundo veterinário, há uma regra de ouro: dono de gato, em geral, tem razão. Se ele diz que o animal está estranho, procure o que está errado.

Juntas, percebemos que Miau não tinha feito xixi naquele dia. A caixa estava bem limpa. Ou ele não estava produzindo urina ou não conseguia escoá-la.

Ilustração Tiago Elcerdo

Sugeri que Xu o internasse. No hospital, a pior notícia: os rins do jovem Miau estavam parando. Em 48 horas, apesar de incansáveis tentativas, Miau morreu.

Miau sempre foi um gato arisco. Vaciná-lo, quando foi adotado, foi tão estressante que decidimos abandonar o protocolo de reforço anual.

Quando as visitas chegavam, desaparecia. Não se sabia se tomava água direito: ele preferia a do box ou da pia. Era difícil saber se comia bem: só se alimentava se o pote estivesse no chão, o que permitia que a cachorra da casa também devorasse sua ração.

Assim, com um comportamento tipicamente felino, Miau foi escondendo os sinais da doença até que fosse irreversível. Na natureza, essa é uma forma de os gatos esconderem a fragilidade dos predadores, característica que os acompanha apesar dos milhares de anos de domesticação. Difícil é fazer os donos não se sentirem culpados e aceitarem a ideia de que muitos gatos acabam vítimas do próprio silêncio felino.


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