Folha de S. Paulo


Cinema Novo de novo

A espetacular retrospectiva do Cinema Novo na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, deveria ter filas na porta. A qualidade dos 53 filmes deixa o Brasil muito melhor na fita do que realmente somos. Corra, porque vai até 14 de junho. Não tem filas. E é de graça!

Martin Scorsese é um grande fã de Glauber Rocha. O cineasta americano mostra os filmes do brasileiro a atores e fotógrafos com quem trabalha para "libertá-los do sistema". E nossos cineastas? Quando viu "Terra em Transe" no MoMA, em Nova York, seguido de aplausos de 20 minutos, Scorsese ficou muito impactado. Seu filme preferido do cineasta baiano é "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", prêmio de Melhor Diretor em Cannes em 1968, que ele vive revendo e mostrando às pessoas.

O Cinema Novo segue novo, como se vê na atualidade e na beleza dos filmes feitos há quase 50 anos. E desconhecido. Ele sempre foi difícil e dificultador. Seu sucesso artístico (e fracasso comercial) implodiu a viabilidade do cinema brasileiro. Todo mundo queria ser Glauber, e um cinema não se constrói com Glaubers, é liderado por eles.

Glauber liderava o cinema e o debate sobre o cinema, que naquela época existia. Mas foi forçado ao exílio e à morte precoce, em 1981, com 42 anos.

Imagine o que estaria dizendo e fazendo hoje no Brasil e no cinema brasileiro. As leis de incentivo e a nova reserva de mercado na TV, reforçadas pelas facilidades tecnológicas, fizeram explodir a produção de filmes, séries, programas, sites. A quantidade traz capacitação técnica, mas não trouxe ainda qualidade. Quantos grandes filmes foram produzidos pelo cinema brasileiro nas últimas décadas? Quantas obras-primas?

A baixa ambição artística dos cineastas atuais, formados num país que trata telenovelas como arte, é oposta à postura épica de qualquer cinemanovista. Por isso, a mostra na Cinemateca é um colírio em preto e branco para os olhos, oportunidade rara de ver obras-primas históricas em película, na tela grande. Novas cópias de "Esse Mundo é Meu", de Sérgio Ricardo, um lindo poema musical fotografado primorosamente por Dib Luft, e "O Bravo Guerreiro", de Gustavo Dahl, foram produzidas especialmente para a mostra.

A cinemateca, mergulhada em demorada crise de gestão e ameaçada por cortes cegos de verba, apresenta com os filmes exposição de objetos e documentos valiosos de seu acervo sobre a produção do Cinema Novo, como roteiros de Glauber com instruções de filmagem, pôsteres icônicos, fotos de produção. Um tesouro.

Quase todo o Glauber está presente. Revi "Terra em Transe" e, como Scorsese, fiquei transtornado. Começa com um "travelling" em direção a José Lewgoy com solo de bateria de trilha sonora, exatamente como em "Birdman", Oscar de melhor filme este ano.

O filme de Glauber, de 1967, que narra as desilusões de um intelectual de esquerda que se envolve com políticos cafajestes e oportunistas, ainda ecoa, atualíssimo, com interpretações impressionantes e expressionistas de atores como Jardel Filho, Paulo Autran, e a incrível Anecy Rocha, irmã do cineasta, também morta trágica e precocemente.

"Eu sou um homem de esquerda", grita Paulo Gracindo, para gargalhada de Paulo Autran, que retruca, com cara de lunático: "Pela harmonia universal dos infernos chegaremos a uma civilização". Puro Glauber. Puro Brasil.

Uma intensidade que não se vê hoje em nosso cinema. Em nossa arte. E como faz falta.


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