Folha de S. Paulo


Califado realiza visão de Bin Laden

Nem o mais shakespeariano dos roteiristas, o mais glauberiano dos cineastas e o mais Marlon Brando dos atores poderiam ter produzido cena tão impactante quanto a execução no deserto do jornalista americano James Folley.

Vi só o introito à degola: Folley de joelhos, roupa laranja e cabeça raspada como na prisão de Guantánamo, declara em tom sombrio e corajoso uma cruel autossentença de morte, resposta de seus captores aos ataques americanos contra o Estado Islâmico, o califado instalado de fato entre Síria e Iraque que espalhou terror e devastação numa área do tamanho da Jordânia. Do seu lado, o carrasco, todo de preto, com sua pequena faca, ameaça o Ocidente num inglês nativo que mostra como o jihadismo atrai cada vez mais muçulmanos ocidentais radicalizados.

Degolas têm sido praticadas com frequência pelos grupos islamistas e depois divulgadas por sua moderníssima máquina de propaganda para arrebanhar novos militantes pelo mundo.

Documentário revelador do site Vice News mostra o califado se formando por dentro, com crucificados e degolados expostos em praça pública e crianças idolatrando a morte pelo islã. Após atrocidades generalizadas, dezenas de milhares de cristãos e outras minorias fugiram do avanço desse exército de fanáticos, bem armados e bem financiados, que começou a instalar uma estrutura de governo funcional na região, com tribunais islâmicos, coleta de impostos, regulação de costumes, destruição de templos "profanos" etc.

É o despertar da besta. A visão de Bin Laden se realiza.

O projeto da Al Qaeda sempre foi derrubar as decrépitas ditaduras árabes e reinstalar na região o califado multinacional. Uma das mais festejadas e simbólicas conquistas do Estado Islâmico foi a eliminação da fronteira entre Iraque e Síria, criada artificialmente pelas potências coloniais europeias no início do século 20.

Depois dos ataques do 11 de Setembro de 2001, o mundo brevemente despertou para a ameaça do extremismo jihadista, financiado por petrodólares e disseminado por uma rede global de escolas islâmicas radicais. Muito se falou de uma geração crescendo vítima da lavagem cerebral desses líderes extremistas, mas pouco se fez dentro das sociedades islâmicas para de fato combater essa doença. E aqui estão eles, barbarizando em nome de Deus.

A cura dessa ameaça ao mundo e, principalmente, aos países islâmicos só pode vir de dentro dessas sociedades. Bombardeios dos EUA podem impedir mais massacres e o avanço do horror, mas também pode estimulá-lo. O problema é muito maior e mais difícil de resolver. Os EUA inclusive contribuíram para ele com sua desastrada invasão do Iraque e desastrada saída do Iraque.

A degola de um inocente jornalista americano choca a parte boa da opinião pública mundial por alguns minutos, mas se os massacres cometidos quase todos os dias no mundo islâmico não compelir o mundo islâmico a combatê-los, a situação vai ficar ainda pior para eles e para todos. O Estado Islâmico vem aí.


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