Folha de S. Paulo


Guerras medievais

O mundo árabe e islâmico está sendo consumido pelo velho cisma sunita-xiita e pelo novo cisma islamista-secular.

O sonho político do pan-arabismo realiza-se via guerra religiosa em pleno século 21. As duas principais correntes islâmicas, sunitas e xiitas, ignoram as fronteiras nacionais não para unir a grande nação árabe, mas para travar combates sangrentos e impiedosos, árabes contra árabes, na Síria, no Iraque, no Líbano, na Líbia.

Mais longe, no Paquistão, o quadro é semelhante, com xiitas e sunitas se matando em ataques suicidas tão frequentes quanto impiedosos contra escolas, mesquitas, hospitais.
O rei da Jordânia disse na semana passada que "a violência sectária e intrarreligiosa pode levar à destruição do mundo islâmico".

Para o chefe das Forças Armadas libanesas, analisando o atentado contra o reduto do Hizbullah xiita em Beirute, o Líbano está no meio de um conflito "árabe, regional e global".

A Guerra Civil síria, por inépcia do sistema multilateral que o Brasil tanto promove, tornou-se campo de batalha global opondo xiitas sírios, libaneses, iraquianos e de outras partes do mundo a sunitas sírios, libaneses, sauditas e de muitas outras partes.

As imagens e relatos que chegaram ontem de suposto ataque com armas químicas num subúrbio de Damasco, a capital síria, são de arrepiar a espinha. Cenas chocantes que vão acirrar mais as divisões. Não faltam fervor religioso, armas e dinheiro alimentando os dois lados.

No sunita Egito, o Irã xiita e a Turquia, países com governos islamistas, apoiam o deposto governo da Irmandade Muçulmana, o grande partido islamista sunita, na sua batalha contra a contrarrevolução militar secularista. O grupo islâmico palestino sunita Hamas, que sempre manteve seu comando em Damasco e era aliado de primeira hora do ditador Bashar Assad, traiu seu patrono e anfitrião e se mudou para o Cairo, onde a Irmandade Muçulmana, sua mentora ideológica, havia chegado ao poder. Mas acabou se estrepando com o golpe militar que depôs a Irmandade.

Décadas de ditaduras ferozes que bestializaram populações inteiras, excluindo as mulheres da força de trabalho e da educação, priorizando a religião ante à razão, adotando a tortura e a violência como instrumentos de gestão desembocaram nesse mar de sangue e incertezas. Só é certo que mais árabes matarão árabes, mais muçulmanos matarão muçulmanos. Em escalas medievais.

Os mortos no Cairo na última semana passam de mil. Número semelhante de mortos é atribuído ao suposto ataque químico na Síria.

Quem está contando?

A não ser que sejam soldados israelenses lutando com palestinos, a opinião pública mundial não dá a menor bola ao sangue árabe e muçulmano derramado alhures.


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