Folha de S. Paulo


A palavra do ano é 'retrocesso'

Evandro Leal - 13.set.2017/Agência Freelancer/Folhapress
Operários retiram material de divulgação da exposição Queermuseu, em frente à sede do Santander Cultural, nesta quarta-feira (13). A mostra gerou polêmica e foi cancelada pelo banco na tarde do último domingo (10).
Operários retiram material de divulgação da exposição Queermuseu no Santander Cultural

Está aberta a temporada de Palavras do Ano, jovem tradição que vem se firmando neste século nos países de língua inglesa. Trata-se de um evento midiático que, embora receba pouca atenção no Brasil, tem grande utilidade para a compreensão do nosso presente sempre convulsivo.

Há um ano, esta coluna era uma recém-nascida quando noticiei aqui as escolhas gringas: o "Oxford" tinha consagrado "pós-verdade" como palavra de 2016; o Dictionary.com foi de "xenofobia"; e o "Merriam-Webster", depois de flertar com "fascismo", acabou caindo nos braços de "surreal". Trump na veia.

Como o Brasil tem sua própria agenda, ousei propor outro vocábulo como síntese de nosso "annus horribilis" (o passado). Um substantivo discreto, mas corrosivo, onipresente e válido não só na esfera econômica: "falência".

Desde então a barra parece ter ficado um pouco mais leve na gringolândia. O "Merriam-Webster" elegeu como palavra de 2017 "feminismo", o que é uma forma de encarar pelo lado positivo a maré de denúncias de abuso sexual que veio na esteira do caso Harvey Weinstein.

Digo que se trata do lado positivo porque a palavra do Dictionary.com, "cúmplice", também teve farto emprego no caso, jogando luz sobre a rede de silêncio tecida em torno de assediadores poderosos como o ex-capitão da Miramax, sem a qual esse tipo de gente não iria longe.

De todo modo, a disposição de dar um voto de confiança à humanidade e declarar seu copo meio cheio parece ter inspirado também a escolha do "Oxford", aquela que carrega mais prestígio entre todas.

Foi uma escolha estranha, muito criticada por recair sobre um neologismo bobo, desses que a imprensa inventa e que quase ninguém usa na vida real: "youthquake".

Mistura intraduzível de "juventude" e "terremoto", o termo é definido pelo "Oxford" como "uma significativa mudança cultural, política ou social provocada por ações ou influência dos jovens". Hum. Convém dar um desconto: parece que a ideia era soar esperançoso, e esperança nunca é demais a esta altura do furdunço.

Infelizmente, não me parece possível fazer justiça ao 2017 brasileiro com uma palavra carregada de boas intenções. Se a discreta recuperação da economia deixou "falência" para trás, o termo que resume esses 12 meses não é menos sombrio.

Um ano que viu o solo comum do diálogo derreter de vez na histeria das redes sociais e a arte ser criminalizada pelas tropas obscurantistas do reacionarismo estético –tanto à direita quanto à esquerda– só pode ser arquivado sob uma rubrica: "retrocesso".

O substantivo é antigo: vindo do latim "retrocessus", que significa recuo, movimento para trás, data do início do século 17 em português. Mas uma rápida consulta ao Google comprova que andou em alta como nunca este ano, empregado por atores variados do quebra-pau político.

Listar todos os nossos retrocessos ocuparia espaço demais, além de ser tarefa complexa. O recuo será sempre relativo: visto pelo outro lado, parece avanço. Quando tanta gente grita "retrocesso", contudo, podemos ter certeza: aí tem.

Que 2018, por mais improvável que isso pareça, traga um avanço para cada retrocesso de 2017, eis o presente de Natal que desejo a todos. Boas festas!


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