Folha de S. Paulo


Millôr contra a crase: 'Quem está errado, o brasileiro ou a regra?

Ricardo Moraes/Folhapress
ORG XMIT: 525701_1.tif Literatura: o escritor, humorista e chargista Millor Fernandes durante entrevista à Folha de S. Paulo, em seu estúdio, em Ipanema, no Rio de Janeiro (RJ). (Rio de Janeiro (RJ). 13.11.2006. Foto de Ricardo Moraes/Folhapress)
O escritor, humorista e chargista Millôr Fernandes (1923-2012) em seu estúdio, em Ipanema, no Rio

Eu tinha acabado de assumir o consultório gramatical do finado "Jornal do Brasil", em 2002, quando Millôr Fernandes me lançou de sua coluna vizinha esta casca de banana: "Existe mesmo a tal crase em português do Brasil, ou é apenas uma macaquice do português de Portugal?"

Falar em casca de banana não deve obscurecer o fato de que o grande humorista e intelectual do Meier, estrela maior do jornal carioca, fazia ali uma mesura gentil ao novato do aconselhamento gramatical. O que repetiu em muitas outras colunas, alimentando um diálogo de grande generosidade (da parte dele).

Mesmo assim, pela profundidade da questão, casca de banana era. Não adiantava responder com aquele orgulho rasinho e bobo do didatismo que sim, ora, é claro que a crase existe, trata-se da contração da preposição "a" com o artigo "a" etc. Crase é uma palavra de origem grega que significa simplesmente contração, fusão. Mas Millôr estava careca de saber disso.

Na época, eu apenas vislumbrava o que para ele era claríssimo: o problema da crase beira a metafísica. "Se 80 milhões de brasileiros alfabetizados erram na identificação de uma regrinha de merda", escreveu na sequência do debate meu ilustre interlocutor, "quem está errado, o brasileiro ou a regra?"

Dava os seguintes exemplos: "Aqui [no Brasil] já vi até placas, inscrições em mármore em edifício de ministério, com três crases erradas. Vi também, por acaso esta semana mesmo, manual de regras de editora importante, para professores, e feito por professor, com 27 páginas contendo 32 preposições craseadas –todas erradamente!!!"

O homem era mais provocador do que linguista, e sabia bem disso. Mas a provocação era boa. O português brasileiro, mesmo no registro que costuma ser chamado de "culto", está cheio até o gargalo de crases absurdas como em "à duzentos metros", "viajou à São Paulo", "vá à uma loja", "deu à ele", "chegamos à um impasse".

Em todos esses casos –que nos confrontam em documentos oficiais, placas de trânsito, textos publicitários, notícias, tuítes, mensagens pessoais, em toda parte– o acento grave que sinaliza crase aparece jogado sobre a preposição "a" sem que haja sombra de um artigo "a" nas imediações.

O que isso quer dizer? A resposta convencional é que estamos diante de um sintoma do grave déficit educacional brasileiro. Não é uma resposta errada, mas é fácil demais. Quando um desvio gramatical é tão disseminado, inclusive entre falantes de alto grau de escolaridade, costuma ser mais inteligente procurar o que está além do óbvio.

"A crase não foi feita para humilhar ninguém", disse o poeta Ferreira Gullar, que foi copidesque de jornal. Optando pelo caminho da não humilhação, somos obrigados a reconhecer que o português brasileiro tende a tratar a preposição craseada como uma preposição de boné virado, invocadinha, livre de qualquer ideia de contração.

Não prego uma revolução gramatical que absolva as batatadas de crase que nos bombardeiam. Elas não me incomodam menos hoje do que me incomodavam quando o Millôr lançou sua provocação libertária.

Só desconfio que o problema do Brasil com a crase vá muito, muito além da gramática. É coisa para ser resolvida num divã de dimensões continentais.


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