Folha de S. Paulo


O Acordo Ortográfico venceu a batalha, mas pode perder a guerra

Danilo Verpa/Folhapress

Sempre fui um defensor do Acordo Ortográfico de 1990, apesar de suas evidentes limitações. Agora que parece (quase) seguro considerá-lo vitorioso tanto no Brasil quanto em Portugal, vejo meu entusiasmo declinar.

Recém-chegado de alguns dias em terras lusitanas, percebo que nunca fui tão descrente da ideia de que a língua portuguesa possa se manter íntegra a longo prazo.

Há indícios de que a unificação –que é real, mesmo prevendo um punhado de variantes– tenha vindo tarde demais para deter o alargamento do abismo linguístico entre nós. Não tenho certezas. Vou falar de impressões.

Em primeiro lugar, convém explicar minha simpatia pelo acordo. Regular ortografia por lei é ideia de jerico. Ela devia ser deixada em paz, sedimentando-se ao longo dos séculos em dicionários. Foi isso que garantiu a relativa coesão ortográfica do inglês, por exemplo.

Essa opção nós perdemos em 1911, quando Portugal implantou sozinho a reforma que acabou com a ortografia etimológica do "ph" e das consoantes dobradas. O Brasil não foi consultado e acabou tomando mais ou menos o mesmo caminho alguns anos depois, mas do seu próprio jeito.

Desde então, enquanto reformas feitas a canetadas se sucediam dos dois lados do Atlântico, nunca mais nos encontramos. O Acordo Ortográfico é mais um erro intervencionista, com a única vantagem de ser, em tese, o erro que vai encerrar a série.

O próprio texto da reforma é vulnerável a todo tipo de crítica. Para ficar num só exemplo, as regras de hifenização de palavras compostas que sempre foram um pesadelo de cláusulas e subcláusulas apinhadas de exceções continuam sendo isso, só que agora são outras. Perdemos a memória visual das palavras sem ganhar nada em troca.

Ainda assim, a ideia de uma ortografia única, projeto liderado pela diplomacia brasileira, me parece falar mais alto. Se jamais teremos uma perfeita unidade de léxico e gramática, que é impossível e nem seria desejável, um modo comum de grafar as palavras pode ser a cola que impeça a sexta língua mais falada do mundo de se fragmentar.

Em meio a fortes resistências, a novidade vai deitando raízes em Portugal. Morreu em 2014 um de seus maiores críticos, Vasco Graça Moura, que em artigos fumegantes destilava um nacionalismo linguístico vizinho do preconceito antibrasileiro.

Moura falava por gente à beça, mas o tempo está contra eles. A maior parte dos jornais e editoras aderiu à nova ordem. Nas escolas, uma nova geração de portugueses é alfabetizada aprendendo que "objecto" não tem "c" –e nem por isso, surpresa, virou "objêto"! Tudo indica que em alguns anos a velha ortografia será peça de museu.

Se é assim, de onde vem meu ceticismo? Da desconfiança de que o acordo não passe de um baldinho de água no deserto. De que a sólida indiferença dos leitores portugueses à literatura brasileira, por exemplo, seja sintoma de uma distância cultural já irreversível.

E por que não seria? Desde 1911, são praticamente incontáveis as inovações vocabulares unilaterais que, de parte a parte, contribuíram para afastar nossas almas aparentadas. Os aviões que aqui decolam, descolam por lá.

O Acordo Ortográfico decolou, está no ar. Mas temo que a descolagem dos pedaços que a utopia lusofônica tenta unir seja questão de tempo.


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