Folha de S. Paulo


O falante decide: de 'judiar' a 'denegrir', PC acerta tanto quanto erra

Ricardo Borges - 02.fev.17/Folhapress
Luiz Fernando Vianna, autor do livro
Luiz Fernando Vianna, autor do livro "Meu Menino Vadio", aponta uso depreciativo da palavra "autista"

No livro "Meu Menino Vadio" (ed. Intrínseca), relato seco e corajoso de sua experiência como pai de um menino autista, o jornalista carioca Luiz Fernando Vianna condena o emprego depreciativo que a palavra "autista" ganhou na política brasileira.

"Tornou-se comum políticos –inclusive um ex-presidente da República– chamarem seus opositores de 'autistas', acusando-os de estarem dissociados da realidade", anota. "Também já fizeram isso intelectuais, artistas, jornalistas, uma presidente do Supremo Tribunal Federal."

O problema com isso? "Em primeiro lugar, é um uso mentiroso. Em segundo lugar, significa estigmatizar uma parte da população que precisa ser incorporada à vida social, e não rotulada como incapaz de fazê-lo", argumenta Vianna. "Se hoje evitamos adjetivos como 'retardado' e 'mongoloide', devemos poupar de agressão semelhante as pessoas com autismo."

Se o tal uso não é propriamente mentiroso, mas metafórico, o segundo argumento me convence no ato. Vasculho a memória para descobrir se eu mesmo usei algum dia a palavra "autista" com esse sentido. Talvez sim, não me lembro bem. O que garanto é que não o farei de novo.

Trata-se, como se vê, de uma daquelas controvérsias que costumamos agrupar sob um amplo guarda-chuva no qual, em letras garrafais, está escrito "PC –politicamente correto".

Amplo demais, o guarda-chuva presta um desserviço ao debate. Abriga preocupações muito diversas e sugere que, diante delas, temos dois caminhos: aceitar ou repudiar todas. Em bloco. Não é uma dicotomia inteligente.

Rejeitar como "coitadismo" a totalidade dos argumentos PC é menosprezar o papel da língua, reflexo da sociedade, na perpetuação de vilezas. Nenhum uso está acima da crítica.

Aceitar de saída todos esses argumentos é ignorar que a língua, arena política onde o pau quebra, pertence à sociedade que a fala e não a um ou outro grupo. Toda crítica está sujeita à crítica.

Enquanto a coletividade não chega a uma conclusão (debates eternos não estão descartados), a decisão cabe ao indivíduo. Senhor da sua fala, ele não precisa esperar o veredito da sociedade para fazer sua escolha política e moral.

Examino o verbo "judiar" (maltratar). Tem óbvio ranço antissemita, embora haja dúvida sobre seu sentido original: referência aos maus-tratos que os judeus infligiram a Jesus ou aos que eles sofrem desde então? De uma forma ou de outra, decido cortá-lo do meu vocabulário.

Agora examino "denegrir". Racista? Procuro algo que sustente a tese. O que se suja fica escuro, encardido, fuliginoso, e o resto parece coincidência cromática. Nem todo charuto é um símbolo fálico, como provam o elefante branco e a febre amarela. No meu tribunal íntimo, absolvo a palavra.

Somos convocados a tomar decisões desse tipo o tempo todo. O que é ótimo.

Meu Menino Vadio
Luiz Fernando Vianna
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O PC comete abusos e se expõe ao descrédito quando, por exemplo, insiste em eufemismos ridiculamente rebuscados para palavras funcionais ou tenta censurar dicionários, como se estes inventassem o vocabulário que apenas retratam.

No entanto, a reflexão permanente que ele propõe tem o mérito de nos deixar ligados. Os problemas sociais não serão resolvidos na língua e pela língua, mas negar que ela esteja incluída no pacote é desconhecer sua natureza.


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