Folha de S. Paulo


Como o português Pedro Carolino escreveu o livro mais idiota do mundo

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Em entrevista ao jornal "The New York Times", mês passado, o escritor americano Paul Auster recomendou um livro clássico –mas pouco conhecido– traduzido do português. Embora raramente nos deem esse tipo de colher de chá no maior mercado editorial do mundo, é improvável que algum lusoparlante tenha se enchido de orgulho.

Desde seu lançamento, por uma editora parisiense, em 1855, vergonha é o sentimento dominante entre os portugueses e brasileiros que tomam conhecimento de "O Novo Guia da Conversação em Portuguez e Inglez", de José da Fonseca e Pedro Carolino –que na língua de Auster leva o título dadaísta "English As She Is Spoke".

O apreço irônico que a obra conquistou desde o século 19 entre os leitores anglófonos foi o que a salvou do esquecimento. Estamos falando de um livro de humor involuntário, uma coleção de despautérios linguísticos sem rival na quantidade de asneiras por página que consegue empacotar.

O "Novo Guia" é declaradamente uma cartilha de inglês voltada para falantes de português. Ensina, por exemplo, a traduzir "Então vou levantar-me depressa" por "It must then what i rise me quickly", construção que é um pesadelo de agramaticalidade e uma piada do tipo que faz rir nervosamente.

Tão ridículo é o livro que até se compreende a tentação de considerar a piada intencional e o autor um humorista de gênio. Tudo indica que era um coitado mesmo, tão bom de inglês quanto eu sou de búlgaro. Ah, sim, "autor" no singular: embora o livro seja assinado a quatro mãos, José da Fonseca, um lexicógrafo português sério, é inocente.

Cabe apenas a seu compatriota Pedro Carolino –de quem nada se sabe, nem mesmo se era esse seu nome verdadeiro– a responsabilidade por aquele que é provavelmente o livro mais estúpido da literatura mundial.

Carolino atingiu feito tão apoteótico de forma singela: "traduzindo" palavra por palavra para a língua de Shakespeare, munido apenas de um dicionário francês-inglês e de sua cara de pau, o correto guia de português-francês publicado anos antes por Fonseca.

Descoberta e cultuada pela rapaziada anglófona, a monstruosa obra-prima do gajo ganhou em 1883 uma edição na Inglaterra e outra nos Estados Unidos –esta com prefácio entusiasmado de Mark Twain.

Com seu prestígio de escritor e humorista, o autor de "Huckleberry Finn" fez muito pela divulgação daquelas "burrices milagrosas", afirmando que o livro "nunca morrerá enquanto durar a língua inglesa".

A profecia vem se cumprindo: se não chegou a virar best-seller, o fato nada desprezível é que, depois que foi traduzido para a língua que não passava perto de falar, o picareta do Carolino nunca mais saiu de catálogo.

Em português a história é outra. A edição brasileira de 2002 da Casa da Palavra –para a qual eu escrevi a orelha– foi, salvo improvável engano, a primeira que o "Novo Guia" teve em nossa língua desde aquele distante lançamento parisiense.

Marcelo de Paiva Abreu, autor do prefácio e da pesquisa por trás da edição, conta que não encontrou um único exemplar da obra em nenhuma das principais bibliotecas públicas de Brasil e Portugal.

Varremos Carolino para debaixo do tapete, pois é. Um erro histórico. Já passa da hora de resgatá-lo como herói e patrono dos tradutores macunaímicos.


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