Folha de S. Paulo


Trump e suas '77 palavras': como um vocabulário pobre vira riqueza

Richard Drew/Associated Press - Saul Loeb/AFP
ORG XMIT: 333701_1.tif Literatura: o escritor norte-americano Philip Roth posa para foto, em Nova York, EUA. Author Philip Roth poses for a photo in the offices of his publisher Houghton Mifflin, in New York Thursday Sept. 8, 2008. (AP Photo/Richard Drew)TOPSHOT - US President Donald Trump speaks during a meeting with automobile industry leaders in the Roosevelt Room of the White House in Washington, DC, January 24, 2017. / AFP PHOTO / SAUL LOEB ORG XMIT: SAL010
O escritor norte-americano Philip Roth e o presidente Donald Trump, em montagem

Donald Trump é "ignorante sobre governo, história, ciência, filosofia, arte, incapaz de expressar ou reconhecer sutileza ou nuance, destituído de toda decência e detentor de um vocabulário de 77 palavras que seria melhor chamar de paspalhês ['Jerkish'] do que de inglês."

Houve época em que ser atacado com tanta violência pelo maior escritor americano de seu tempo representaria uma dor de cabeça séria para o presidente dos EUA.

Ocorre que as declarações fumegantes do recluso e aposentado Philip Roth, dadas por e-mail à revista "New Yorker", caíram no sopão frio de uma cultura em que deixamos de dar bola para o que pensam os escritores. Mesmo que sejam grandes, imensos escritores, como o autor de "Complô Contra a América".

Nesse romance de 2004, Roth imagina uma história alternativa em que o aviador Charles Lindbergh, simpatizante do nazismo, assume a presidência do país em 1940. Seu primeiro ato é assinar um tratado de cooperação com Adolf Hitler.

São óbvios os paralelos com a realidade de um presidente que tem inclinações fascistas e laços mal explicados –mas inegáveis– com a Rússia de Putin. Ainda que, pondera Roth com crueldade, Lindbergh fosse um ser humano muito melhor que Trump.

Eu, na contramão do mundo, dou bola para o que pensam os escritores. O que mais chamou minha atenção na diatribe de Roth foram aquelas "77 palavras". Claro que o número é comicamente subestimado: a ideia é dizer que Trump usa um vocabulário pequeno. Verdade. Acontece que limitar-se a apontar isso como defeito mascara o fato de que está aí uma das razões de seu sucesso.

Análises linguísticas demonstram que, mais do que empregar palavras simples em frases curtas, Trump dá preferência a vocábulos de uma sílaba. Em certos trechos analisados, os monossílabos chegam a 80%.

Some-se a isso o truque emocional de repetir bordões até encravá-los na paisagem mental do ouvinte pela força do martelo, dispensando a argumentação, e entende-se melhor seu sucesso.

Faz tempo que a política passou a ser regida pela lógica do espetáculo. Nesse cenário, discursos articulados, complexos e cheios de "sutileza ou nuance" –como os que Barack Obama cultivava– vão cedendo cada vez mais espaço aos "sound bites".

Frases de efeito curtas, os "sound bites" ("belisquetes sonoros", num tradução literal intencionalmente cômica) são declarações projetadas para serem deglutidas de uma só vez no telejornal da noite. Nada de indigestos banquetes de ideias.

Trump não inventou essa cultura da superficialidade. Profissional do lero-lero de venda, o que fez foi dar um baile nos políticos tradicionais –que os marqueteiros treinam em "sound bites", mas que geralmente não os trazem na alma.

Num divertido ensaio dos anos 1950 sobre a linguagem do pregador evangélico americano Billy Graham, publicado no livro "Mitologias", o semiólogo francês Roland Barthes escreveu: "Se Deus fala realmente pela boca do Dr. Graham, temos de reconhecer que Deus é surpreendentemente tolo: a Mensagem espanta pela sua chatice e infantilidade".

Acontece que o método de Graham –"a violência e intensidade da declamação, a expulsão sistemática de todo conteúdo racional da proposição, a ruptura incessante dos encadeamentos lógicos, as repetições verbais"– fazia enorme sucesso. Trump não nasceu ontem.


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