Folha de S. Paulo


Pitoresco, novo glossário da corrupção nada revela do caráter nacional

A revelação do grande número de sinônimos de "propina" que nossa corrupção sistêmica tem produzido é um efeito colateral curioso da Lava Jato. Mas convém ter cuidado: seria leviano extrair dessa inesperada contribuição lexicográfica da Polícia Federal conclusões sobre o caráter brasileiro.

Há uma razão simples –e estudada desde a Idade Média, pelo menos –para que políticos e funcionários de empreiteiras dedicados à privatização criminosa de dinheiro público chamem a grana da corrupção por nomezinhos fofos ou jocosos. É a lógica do jargão.

Linguagem codificada restrita a um círculo de iniciados, o jargão, gíria ou patoá está longe de ser exclusividade do submundo do crime. Também se faz presente em sociedades secretas como a maçonaria e categorias especializadas, sobretudo as profissionais. Mas sempre floresceu com vigor particular em grupos marginalizados.

Acarajé, pixuleco, oxigênio, charuto, bacalhau, assistência social. Os apelidos da propina que a Lava Jato revelou têm uma única originalidade: o meio criminoso em que brotaram só pode ser chamado de marginal com licença poética. Não se situa à margem, mas no centro do poder.

Jargões e gírias têm função dupla: comunicar e confundir, incluir (os iniciados) e excluir (todos os outros). Tão importante quanto sua capacidade de fazer boiar o ouvinte casual é o círculo morninho de cumplicidade que cria entre os falantes. Vem daí o abuso de metáforas e eufemismos com efeito cômico ou carinhoso.

No livro "Línguas e Jargões", o historiador inglês Peter Burke chama esse tipo de linguagem cifrada de "um meio e um sinal de iniciação em uma nova comunidade, verdadeiramente uma 'segunda vida'". Parece exagero, mas compartilhar do segredo gera uma espécie de exaltação vital. Os excluídos da "nova vida" são otários. No caso, otários literais: todos os que pagamos pela farra.

À parte a fertilidade recente, irrigada por bilhões de reais, seria incorreto dizer que nossa língua é especialmente rica em palavras para designar suborno. Mesmo que fosse, partir daí para uma tentativa de explicar o caráter nacional seria um erro. As coisas não são tão simples no reino das palavras.

Bola, molhadura, pedágio, café, cervejinha, jabá, lambuja, gruja, comissão, xixica, mata-bicho. A lista de sinônimos de "propina" que se pode encontrar nos dicionários é pitoresca, mas mistura palavras usadas com desusadas e com graus variados de conotações escusas em sua carga semântica. Em Portugal, o próprio termo "propina" é inteiramente legal.

Recomenda-se cautela com esse tipo de extrapolação, típico das lendas linguísticas. Como aquela que atribui aos esquimós mais de cem palavras para designar "neve". Baseado num trabalho sério do antropólogo Franz Boas, o mal-entendido se multiplicou em artigos jornalísticos ao longo do século passado, com o número de palavras crescendo a cada nova edição. Hoje é difícil encontrar quem não lhe dê crédito.

As línguas esquimós têm um número reduzido de radicais para designar "neve". A riqueza vocabular vem do fato de elas permitirem aglutinar a qualquer radical informações que em outros idiomas poderiam ser apresentadas como adjetivos. O que é interessante, mas vale para as palavras em geral e nada revela sobre a relação dos esquimós com a neve.

Ilustração Adão Iturrusgarai/Editoria de Arte/Folhapress

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