Folha de S. Paulo


O que Moçambique pode nos ensinar sobre a língua como arma política

Mustafá Ozer - 8.jun.2010/AFP
ORG XMIT: 470801_1.tif Futebol - Amistoso: Portugal 3x0 Moçambique: torcedores moçambicanos tocam vuvuzelas durante o jogo amistoso entre as seleções de Portugal e Moçambique no Wanderes Stadium em Johannesburgo (África do Sul). Jogo fez parte da preparação do time português para a Copa do Mundo de 2010. *** Fans blow vuvuzela horns next the Mozambique flag in front Wanderes Stadium in Johannesburg on June 8, 2010 before a friendly match between Portugal and Mozambique ahead of the start of the 2010 World Cup football tournament on June 11 in South Africa. AFP PHOTO / MUSTAFA OZER
Torcedores moçambicanos se preparam para amistoso entre Portugal e Moçambique em 2010

Na minha retrospectiva pessoal de 2016 tem lugar de destaque a manhã de outubro em que me vi falando ao microfone diante de um salão lotado de estudantes. Todos jovens, quase todos com roupas de cores alegres em contraste com os rostos sérios, desconfiados, mas atentos.

A maioria das mulheres tinham trancinhas trabalhosas nos cabelos longos. Quase todos os homens eram tosados na disciplina da máquina. Todos eram negros e falantes de português, mas um português diferente do meu, aprendido em geral na escola, não no berço.

Eu estava lá para falar sobre o jeito brasileiro de tratar a língua que herdamos do colonizador comum, mas o que fiz de melhor na Escola de Jornalismo de Moçambique, um curso de nível médio, foi entreter ideias novas sobre o idioma ao qual, um mês antes, eu tinha declarado publicamente meu amor –ao mesmo tempo que expunha nossas DRs– no livro "Viva a língua brasileira!".

A visita era parte da programação preparada pela embaixada do Brasil, responsável por minha presença na Feira do Livro de Maputo. Tudo intenso e corrido, muito que ver e conversar para dar conta da curiosidade tocante do país jovem –independente desde 1975, anteontem– por aquele que, com seus quase dois séculos de emancipação, é visto como um irmão mais velho.

Mais velho, mais gordo e quem sabe –no que se refere à postura diante da língua– mais bobo. A imagem me ocorreu enquanto ouvia o discurso do escritor e linguista Calane da Silva, meu companheiro de mesa na Escola de Jornalismo e um dos grandes intelectuais do país. Calane explicou por que o "idioma do opressor" foi adotado pela Frente de Libertação de Moçambique como língua oficial: "A arma que se captura ao inimigo passa a ser sua, usada para combatê-lo."

Entre as razões para a escolha, a principal era a integração nacional. Há 23 línguas nativas em Moçambique. Todas são do grupo banto, mas tão diversas que, de modo geral, os falantes de uma não se entendem com os de outra. Privilegiar uma delas provocaria conflitos certos. Em outras palavras: apesar de usado apenas pela metade da população que tem acesso à educação formal, e na maioria dos casos como segunda língua, é o "idioma do opressor" que, paradoxalmente, liberta.

Foi fascinante encontrar uma aplicação tão singela da ideia de língua –e da literatura expressa nela– como arma política. Sabemos em tese que é assim, mas dois séculos de desacertos são suficientes para deixar o cidadão bem cínico, e o resultado é que a um brasileiro de hoje parece alienígena ou careta a associação entre idioma, cultura e construção de uma sociedade decente. Uma associação que soa natural num país cuja bandeira ostenta, superpostos, os desenhos de um fuzil, uma enxada e um livro.

Em mais uma cena da minha retrospectiva, estou em Ouro Preto para outro festival literário e vejo pintado num muro o anúncio espalhafatoso de um show de música sertaneja. O nome da atração me escapou, mas nunca vou esquecer o imperativo grotesco: "Salve a data". Queriam dizer "reserve a data", claro. Acabaram usando, na terra dos inconfidentes, a tradução burra do inglês "Save the date" porque faltou educação, porque tem faltado educação, porque o Brasil está muito doente por falta de educação.

Às vezes, cabe ao irmão menor dar um toque no primogênito.


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