Folha de S. Paulo


'Pós-verdade' e 'xenofobia' largam na frente na busca pela palavra de 2016

Está aberta a temporada de caça à palavra-síntese de 2016, e vale palavrão. O dicionário "Oxford" largou na frente com uma candidata forte: "pós-verdade". Não quer dizer que a disputa esteja decidida. Novos vocábulos continuam sendo propostos mundo afora, e no Brasil mal começamos a procurar um rótulo sucinto para este "annus horribilis". Não faz parte da nossa
cultura, mas talvez devesse fazer.

Consta que a tradição de eleger palavras do ano nasceu em 1971 numa sociedade de estudos linguísticos da então Alemanha Ocidental. A língua inglesa pulou no bonde no início dos anos 1990, com a boa lista da American Dialect Society –que, como de costume, só divulgará a palavra de 2016 em janeiro.

Não se tratava, a princípio, da busca de um vocábulo encharcado do espírito do tempo, da "atmosfera" dominante em um conjunto de 365 dias. Procuravam-se novidades, termos que, inexistentes ou marginais até então, tivessem conquistado multidões e penetrado na corrente principal do idioma.

Só neste século o aspecto de síntese do "Zeitgeist" foi incorporado à cultura midiática como pitéu de fim de ano, ao lado de retrospectivas e listas de mortos ilustres.

A maioria dos dicionários que entram na brincadeira não levam em conta a novidade da palavra, mas sua pertinência.

O "Oxford" procura um equilíbrio entre os dois aspectos. Desde que começou a eleger sua palavra do ano, em 2004, consagrou vocábulos e expressões como "pegada de carbono", "selfie" e, ano passado, algo que nem era um signo verbal: o emoji que chora de tanto rir.

Há três semanas, o mais importante dicionário da língua inglesa voltou ao reino do verbo. Elegeu o substantivo "post-truth", "pós-verdade" –cunhado nos anos 1990, mas de uso restrito até recentemente– como tradução de um ano que teve Trump, "brexit" e não sei mais quantas provas de que, num mundo em que as redes sociais formam a opinião pública, algo profundo mudou.

Políticos mentem desde o início dos tempos, mas o desmentido costumava cobrar um preço alto. Hoje há indícios de que o apelo à emoção dos eleitores por meio de versões parciais, quando não totalmente falsas, sobrepujou a crença de que temos um problema quando as "ideias não correspondem aos fatos", como disse Cazuza.

Fazer a ideia corresponder aos fatos é pré-requisito de qualquer candidata a palavra do ano. Mesmo que isso signifique abrir mão da novidade. O Dictionary.com, dicionário digital americano, escolheu semana passada um termo dicionarizado há mais de um século: "xenofobia", sentimento de temor ou ódio ao diferente, em especial a estrangeiros.

O tradicional "Merriam-Webster" não faz bem uma escolha, mas confere o título ao verbete com maior número de consultas online. Até o mês passado a liderança estava com "fascismo", o que levou o dicionário a fazer pelas redes um apelo meio patético para que os leitores pesquisassem palavras mais leves.

Foi atendido. A disputa está aberta.

Tudo isso deixa claro que a barra pesou. Estranho pensar que há apenas um ano o "Oxford" surpreendia o mundo ao escolher uma não palavra. A provocação era boa, mas soa amena demais. Hoje as lágrimas daquele emoji não seriam de felicidade.

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Saudações ao professor Pasquale Cipro Neto, referência do colunismo de língua portuguesa e ilustre ocupante deste espaço por tantos anos.


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