Folha de S. Paulo


Testamento do baterista

Daryan Dornelles/Divulgação
Wilson das Neves comemora seus 80 anos com série de shows em São Paulo
Wilson das Neves em 2016, em turnê que comemorou seus 80 anos

RIO DE JANEIRO - De tudo que se escreveu, e bem, sobre o baterista Wilson das Neves, morto na semana passada, aos 81 anos, o texto de Luiz Fernando Vianna na Folha traz a revelação mais importante: a de que, para Das Neves, o papel do baterista é o de "dar o pulso do conjunto". Ou seja, sustentar o ritmo, a levada, a batida. Bancar o metrônomo. Dar a base para que os outros instrumentos possam trabalhar. "Fazer isso bem não é pouco", diz Luiz Fernando. "E [Das Neves] fazia isso bem como poucos".

O assunto me interessa porque, nos últimos anos, quase saí no meio de vários shows a que fui assistir, ensurdecido pelo tiroteio de bateristas turbulentos e exibicionistas que insistiam em tocar junto com o cantor e seguir suas frases —como se fossem eles, os bateristas, os responsáveis pela melodia. E, enquanto se dedicavam a se intrometer na seara alheia a fim de aparecer, esqueciam-se de sua função, que era a de construir o alicerce rítmico para seus companheiros. É uma nova tendência, uma infernal mania.

Wilson das Neves recusava-se a competir com os solistas. Aprendera com Luciano Perrone, pioneiro brasileiro da bateria, e com os maestros com quem trabalhou —o trombonista Astor, o saxofonista Cipó, o organista Ed Lincoln— que o baterista é vital, mas na sua função. Música é conjunto, entrosamento, harmonia. Nem mesmo o ocasional solo que lhe ofereciam o interessava. "Minha bateria não foi feita para apanhar", ele dizia.

Mas, se alguém atribuir sua modéstia a alguma limitação técnica, recomendo que procure no YouTube a inacreditável gravação de "Deixa Isso Pra Lá", com ele e Elza Soares, feita em 1967 —um terremoto de voz e bateria como nunca antes no Brasil.

O arranjo assim pedia e Wilson das Neves estava lá. Elza teve, literalmente, de rebolar para acompanhá-lo.


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