Folha de S. Paulo


Apetite esvoaçante

Maristela do Valle-22.set.2005/Folhapress
A biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra, em Portugal
A Biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra, em Portugal

RIO DE JANEIRO - Contumaz frequentador de sebos de livros, acostumei-me a ver, em muitos deles, um gato. Claro. Não apenas os gatos ficam bem entre livros, como são seus guardiões nas longas noites em que os sebos ficam fechados e sob sua pior ameaça —os ratos. Fui e sou amigo de vários gatos dos sebos cariocas e sei de suas façanhas na proteção de grandes preciosidades. Meu favorito era Zulu, o gato da Dantes, na rua Dias Ferreira, no Leblon. Graças a ele, tenho hoje a coleção completa de Arsène Lupin, da Vecchi. Mas a Dantes não existe mais e Zulu, temo eu, também não.

Outro dia, tive a atenção despertada para outros animais a quem milhares de livros devem a vida: os morcegos. A notícia falava da colônia de morcegos mantida pela Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra, em Portugal, para se proteger dos insetos bibliófagos. A Joanina é considerada uma obra-prima barroca e tem esse nome porque foi criada, em 1716, pelo rei d. João 5º (1689-1750), que, por ter plantado tantas bibliotecas em Portugal, ficou conhecido como o Magnânimo.

Um lugar assim, com 300 anos de umidade, mofo e cavernas na madeira viva, é um banquete para traças, brocas e cupins. Mas, então, entram em ação os morcegos que, um dia, penetraram por seus telhados e janelas, e devem estar lá há gerações. É um embate entre a fome e a vontade de comer, tendo como troféus livros talvez únicos, insubstituíveis.

Diz-se que um único morcego pode comer até 500 desses bicharocos numa noite. Não sei qual é a população de morcegos da Joanina, mas, dada a capacidade de proliferação dos insetos, imagino que a biblioteca não possa abrir mão de um só morcego.

O que sei é que, com todo esse apetite esvoaçante, a biblioteca precisa cobrir os livros mais preciosos. Afinal, o que os morcegos comem tem de sair por algum lugar.


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