Folha de S. Paulo


Festejado autor

Fabio Braga/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 27-06-2014: Maquina de escrever que pertence a Delfim Neto, no ecritorio montado para ele dentro da Biblioteca. Acervo doado pelo ex-ministro Delfim Netto para a Faculdade de Economia, Adminitracao e Contabilidade da Universidade de Sao Paulo. (Foto: Fabio Braga/Folhapress, MERCADO).
Máquina de escrever

RIO DE JANEIRO - Pena só ter tomado conhecimento da história outro dia, muito depois de ela ter acontecido, e mesmo assim porque os dois personagens tinham acabado de morrer (aliás, quase ao mesmo tempo -ela, no Rio; ele, em sua cidade, onde voltara a morar). Não sei se faria diferença se tivesse sabido antes. Mas talvez fosse uma opinião a mais quanto aos dotes literários da moça em questão.

Era uma vaga conhecida, amiga de uma namorada. Sem que ninguém desconfiasse, alimentava fumaças literárias —queria ser escritora, achava que levava jeito, tinha paixão pelas palavras. Primeiro, exercitou-se em contos que nunca mostrou a ninguém; por fim, arriscou-se num romance. A quem submetê-lo? A um romancista altamente cotado entre os críticos, e que ela muito admirava. Descobriu seu endereço, mandou-lhe o original e ficou à espera de uma opinião. Um elogio, mesmo falso, já a deixaria contente.

Seguiu-se um silêncio de meses. Certa noite, ela o encontrou numa livraria. Identificou-se, falou do romance que lhe mandara e... Ele foi frio: "Escrever é uma coisa. Literatura, outra". A moça desabou. Escrever era uma coisa, literatura, outra —donde o que ela fazia não era literatura. E, como não sabia o que era, nunca a faria. Voltou para casa, queimou seus escritos e nunca mais tentou nada. Morreu de um câncer que devorou até suas frustrações.

Por acaso, conheci esse fabuloso autor. Foi meu repórter na "Manchete", em começos dos anos 70. Era péssimo, queria fazer literatura na revista, seus textos eram uma tortura, não informavam nada e davam o maior trabalho a nós, redatores. Um dia, sumiu, talvez demitido. Ressurgiu anos depois como festejado romancista e, em minha opinião, tão oco e pretensioso quanto.

Lamentei nunca ter-lhe dito na "Manchete": "Literatura é uma coisa. Escrever, outra".


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