Folha de S. Paulo


Vida pela memória

RIO DE JANEIRO - Imagine uma biblioteca da Antiguidade, talvez a maior de todas: a de Alexandria, no Egito. Entre os séculos 3º e 1º a.C., ela abrigou 500 mil rolos de documentos, alguns datando dos primórdios da escrita, papiros da era faraônica e manuscritos de Sócrates e Aristóteles. Seus bibliotecários eram matemáticos, poetas, médicos, filósofos, religiosos. Caravanas de estudiosos cruzavam mares e desertos para consultá-la. Certo dia, por razões militares, o imperador romano Júlio César (100 a.C-44 a.C.) ordenou o incêndio do porto de Alexandria -e, com este, foi-se a Biblioteca, que ficava ali.

Dois mil anos depois, alguém se propôs a reconstruí-la: o historiador Mostafa el-Abbadi. A ideia lhe ocorreu em 1972, durante uma visita do, acredite, presidente americano Richard Nixon ao Egito. Um assessor soprou ao ouvido de Nixon perguntar sobre a biblioteca a seu colega Anwar el-Sadat. Sadat não sabia nada e chamou Abbadi, que lhes deu uma aula. Em 1988, com o apoio da Universidade de Alexandria e da Unesco, deitou-se a pedra fundamental. Em 2002, a Bibliotheca Alexandrina -21 mil m² de salas de leitura e de conferências, quatro museus e um monumental acervo- foi inaugurada, a metros do sítio original.

Mas Abbadi e a Bibliotheca não foram felizes para sempre. Aliás, romperam muito antes da inauguração, quando ele acusou as construtoras de violar santuários arqueológicos e despejar tudo no mar. Estranhou também o custo da obra: US$ 220 milhões. Enfim, a velha história. Nem o convidaram para a solenidade.

Hoje, é o Egito que arde à volta da Bibliotheca, na cidade que Lawrence Durrell, autor do "Quarteto de Alexandria", chamou de "capital da memória".

E Abbadi, de quem se disse que trazia "civilizações inteiras na cabeça", morreu lá há dias, aos 88 anos, levando-as com ele.


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