Folha de S. Paulo


A bordo com Callado —e Jeeves

Patrícia Santos - 11.abr.1995/Folhapress
O escritor Antonio Callado na Academia Brasileira de Letras em 1995

RIO DE JANEIRO - Antonio Callado, que teria feito 100 anos na última quinta (26), era um absurdo de agradável como pessoa. Seu tom de voz, olhar atento e respeito pelo interlocutor faziam com que, em sua presença, o ser humano parecesse melhor. Eram qualidades que, não sei por quê, atribuíamos aos ingleses, e, em jovem, Callado morara em Londres, a trabalho. Teria trazido de lá essa postura? Nelson Rodrigues achava que não. Para ele, o inglês era uma ilusão, e Callado, sim, o "único inglês da vida real".

Callado foi generoso comigo durante o trabalho em meu livro sobre Nelson, "O Anjo Pornográfico", de 1992. Recebeu-me mais de uma vez em seu apartamento no Alto Leblon e me falou do Nelson com quem trabalhou em 1941, ambos adaptando quadrinhos e folhetins para o "Globo Juvenil", e do Nelson com quem conviveu nos ásperos anos 60 e 70, sem que as diferenças ideológicas os separassem.

Por vários motivos, eu só conhecera Callado tardiamente, num dos passeios de saveiro que uma turma de jornalistas e escritores do Rio fazia à Ilha Grande em fins dos anos 70. Numa dessas, no Réveillon de 1979, eu levara para bordo um livro de P.G. Wodehouse (1881-1975), da sua longa série sobre o dândi Bertie Wooster e seu fabuloso criado Jeeves, na Londres de 1910. Não há leitura menos "séria" —nem mais deliciosa. Lendo sentado no chão, junto à amurada, reparei que Callado, no outro lado do convés, me olhava.

Aquilo começou a me incomodar. Ali estava o homem que sobrevivera às bombas sobre Londres na 2ª Guerra, dirigira o "Correio da Manhã", cobrira o Vietnã, escrevera "Quarup" e vivia sendo preso pela ditadura. Devia estar me achando o maior alienado do mundo. Horas depois, não se conteve. Aproximou-se e disse:

"Ruy, falta muito para você terminar? Este é o único livro do Jeeves que ainda não li!".


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