Folha de S. Paulo


Os cristais de Johnny

RIO DE JANEIRO - Em 1999, o pesquisador musical Sergio Ximenes foi visitar Johnny Alf. Em certos países, o autor de "Rapaz de Bem" e de tantas canções que lançaram as bases da bossa nova seria um homem rico. Mas Johnny não era. Aos 70 anos, sem renda e sem trabalho, morava numa pequena casa na Mooca, em São Paulo, com uma varandinha, uma saleta, um quarto e um arremedo de quintal.

Na saleta, ficavam um piano de armário (quebrado, sem uso), uma mesa e uma antiga cristaleira -esta, sem um copo, taça ou garrafa nas prateleiras de vidro, mas abarrotada de papéis. Ximenes viu que eram partituras. Perguntou se podia examiná-las e Johnny disse, claro. Ximenes abriu o móvel e tirou os primeiros maços lá de dentro.

Eram as partes originais para piano de "Escuta", "O Que é Amar" e "Ilusão À Toa", três sambas-canção com que Alf iluminou a noite carioca nos anos 50; a do baião "Céu e Mar"; as de "Seu Chopin, Desculpe" e "Fim de Semana em Eldorado", além da de "Rapaz de Bem", que sacudiram a bossa nova; e de obras-primas românticas como "Nós" e "Eu e a Brisa". Algumas dessas partituras estavam amareladas; outras, queimadas de cigarros e com marcas de copos.

Todas tinham sua história. Falavam das pessoas que, bebendo, fumando e amando ao seu redor, um dia as ouviram pela primeira vez, nas boates do Rio ou de São Paulo, e nunca mais foram as mesmas. Encantado, Ximenes devolveu o material à cristaleira.

Um ano depois, em nova visita, viu o móvel vazio e perguntou pelas partituras. "Ah, estavam me tomando muito espaço", disse Alf. "Dei tudo para o homem do carrinho de mão." Ximenes queria morrer -como Johnny podia ter se desfeito daquele tesouro? Alf sorriu. Para ele, na sua modéstia, aqueles papéis não significavam nada. A música estava em sua cabeça, em seus dedos.


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