Folha de S. Paulo


Nascido para o papel

RIO DE JANEIRO - Grande Otelo teria completado 100 anos há duas semanas e a imprensa abriu-lhe o espaço devido. Como sempre, as matérias falaram da admiração que Orson Welles -que o conheceu quando esteve por aqui em 1942, para filmar o baldado "É Tudo Verdade"- sentia por ele. "Otelo é um gênio", Welles vivia dizendo. Mas não vi nenhuma referência à queixa que, certa vez, Otelo fez para um amigo: "Ele [Orson] vive me elogiando e perguntando por mim quando encontra um brasileiro. Mas nunca me convida a trabalhar num filme".

Vejamos. Ao conhecer Otelo, Orson já fizera "Cidadão Kane" (1941) e estava finalizando "Soberba" (1942). Seguiram-se "Jornada do Pavor" (1943), que ele apenas co-dirigiu, e "O Estranho" (1946), dois dramas sobre o nazismo, um passado na Turquia e o outro, na Nova Inglaterra. Não tinham espaço para um ator com as características de Otelo.

Veio então "A Dama de Shangai" (1948). Neste, sim, Welles poderia ter usado Otelo, quem sabe num número típico de mafuá, na sequência do parque de diversões. Fico imaginando Otelo diante daquele espelho que multiplica a figura de Everett Sloane -que show ele daria. "Grilhões do Passado" (1956) e "A Marca da Maldade" (1958) também comportariam Otelo em alguma ponta, mesmo que inserida a muque. Já em "O Processo" (1962), Otelo não teria nada a fazer. E os filmes finais de Orson como diretor não contam.

Deixei para o fim, de propósito, os dois filmes de Welles em que ele poderia ter usado Otelo: "Macbeth" (1948), nem que fosse como uma das bruxas, e, claro, "Otelo" (1951), no papel-título. Isso é que seria revolucionário. Mas Orson, egoísta, monopolizador, preferiu aplicar a maquiagem e fazer Otelo ele mesmo.

Frustrado, nosso Otelo teve de contentar-se em ser a melhor coisa de todos os filmes brasileiros em que apareceu.


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