Folha de S. Paulo


Paradoxos da renúncia

Jesus é o mestre do paradoxo: os últimos serão os primeiros, o maior tem de ser o servo de todos, os publicanos e as prostitutas nos precederão no Reino de Deus.

Desses paradoxos, um se aplica ao choque vindo de Roma: quem quiser guardar a vida, acabará por perdê-la; quem a entregar livremente, alcançará a vida eterna.

A interpretação de ato mais que tudo religioso como o do papa deve ser feita não através do olhar de fora para dentro, por critérios da lógica política mundana. O olhar precisa partir de dentro, da perspectiva espiritual do cristianismo, religião que inaugurou uma contra-lógica.

Ela se expressa num paradoxo supremo: a morte na cruz abre caminho à ressurreição, a derrota é uma forma de vitória, o fracasso aparente conduz à fundação da Igreja.

Esse sentido profundo está implícito na escolha da quaresma, o período da paixão, morte e ressurreição do Cristo, para o anúncio de decisão cujas causas físicas saltam aos olhos na imagem frágil de Bento 16 na missa de Cinzas. Não há contradição, porém, em afirmar que a renúncia constitui também ato político de excepcional relevância. De fato, ela coloca, de modo incontornável, o problema do exercício do poder numa igreja que sofre permanente tensão dialética entre dois elementos do seu nome: católica, isto é, universal e romana, centralizada na Cúria.

Levada ao extremo nos dois últimos séculos, a centralização começou a enfrentar reação contrária no Concílio Vaticano 2º, expressão do princípio da colegialidade e de sua aplicação: os sínodos episcopais, as conferências nacionais de bispos, a eleição sucessiva de dois papas não italianos. Desde então, tornou-se desafio sobre-humano conciliar o acúmulo dos poderes numa só pessoa com a efetiva participação de uma comunidade de mais de um bilhão de fiéis de centenas de línguas em milhares de dioceses.

Ao eleger um "atleta religioso" de 58 anos, os cardeais adiaram o problema. Até que o longo e doloroso declínio físico de João Paulo 2º voltasse a evidenciar que o papado centralizado e vitalício se tornara uma tarefa impossível, além de contraditória com a exigência de que os bispos se retirem aos 75 anos e os cardeais percam o direito de voto aos 80!

Ao reconhecer essa impossibilidade e dela retirar as consequências com seu ato, o papa, sem convocar novo concílio, relança a sempre inacabada obra de renovação da igreja. Pode ser que o conclave adie de novo a solução. Cedo ou tarde, contudo, será necessário enfrentar o difícil desafio de conciliar dois objetivos igualmente desejáveis: preservar a unidade e estimular o pluralismo, guardar o patrimônio da fé na sua essência e deixar espaço à afirmação da autonomia da consciência individual e das legítimas diferenças de heranças culturais e nacionais.

Ao afirmar o primado de sua consciência, Bento 16 obrigou os cardeais a enfrentarem suas responsabilidades. Não "desceu da cruz", como insinuou um cardeal; escolheu nela permanecer de modo diferente. Pois, o que será mais árduo: sofrer e morrer na glória do papado ou abrir mão do poder e aceitar diminuir para que outro cresça?


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