Folha de S. Paulo


Pode a arte salvar o Ocidente?

Luo Huanhuan/Xinhua
Visitantes na exposição Documenta 14 en Kassel, na Alemanha
Visitantes na exposição Documenta 14 en Kassel, na Alemanha

Dois dos eventos de arte contemporânea mais importantes do planeta estão em curso: a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, na Alemanha, realizada a cada cinco anos. Um ponto em comum pode ser visto em ambos: uma sensação de declínio do "Ocidente", conjugada com a tentativa de curar o que deu errado.

A Documenta é explícita nisso. Pela primeira vez o evento se dividiu entre Alemanha e Grécia. Quem foi a Kassel em busca da exposição "principal" frustrou-se. Ela está em Atenas, cujo principal museu, por sua vez, mandou uma seleção de artistas nacionais para ocupar os
espaços da Documenta original.

A troca pode ser lida como tentativa de reparação para com o país que é o berço da cultura ocidental. Se economicamente o país foi subjugado pela Europa, culturalmente é elevado à posição central (apesar das críticas que essa decisão gerou).

Em Veneza, a crise ocidental também comparece forte. Por exemplo, no devastador ataque que a jovem artista chinesa Guan Xiao faz ao ícone maior da cultura clássica: o "David" de Michelangelo. Em uma obra de poucos minutos, ela cria um videoclipe electro-pop dizendo em inglês, com forte sotaque chinês: "Este é David, mas ele desapareceu. Você não pode vê-lo. Não sabemos por que estamos olhando para ele". A afirmação fica ainda mais forte diante do medo da emergência do Oriente (em especial da China), tema que permeia tanto Kassel quanto Veneza.

Se a cultura é termômetro das mudanças sociais, há uma figura ausente
das mostras: Donald Trump. A razão é que ele foi eleito quando as obras já tinham sido selecionadas. No entanto, muitos dos conflitos que levaram à sua vitória (que também é sintoma da crise da "cultura ocidental") estão lá documentados.

Se a política falha em tratar desses embates diretamente, a arte ao menos tenta. Veneza o faz por meio da fuga, privilegiando trabalhos escapistas ou ingênuos (há exceções), e Kassel, via o escancaramento incômodo de posições políticas antagônicas e talvez inconciliáveis.

Isso é visível no documentário "Two Meetings and a Funeral", que retrata o "Movimento Não Alinhado" dos anos 1960, que reuniu países dispostos a dizer não às potências da época. Ou na obra de Marilou Schultz, que relembra a cooperação impossível entre os navajo dos EUA e a indústria de semicondutores, a ponto de haver coincidências entre o povo e o design de microchips. Houve também a tentativa de assimilar os navajo como mão de obra de empresas de tecnologia nos anos 1960, até que a cooperação ruiu e
deu lugar a conflitos incontornáveis.

Pode a arte curar o estado de desencanto do mundo ocidental? Desencanto com a democracia, a economia, os modos de vida e o futuro? Olhando a Bienal e a Documenta, a resposta é claramente não. No entanto, ela pode servir de território para revelar o mundo. Um lugar esquisito onde se encontram verdades, que ultimamente andam desaparecidas como o "David" de Guan Xiao.

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