Dois dos eventos de arte contemporânea mais importantes do planeta estão em curso: a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, na Alemanha, realizada a cada cinco anos. Um ponto em comum pode ser visto em ambos: uma sensação de declínio do "Ocidente", conjugada com a tentativa de curar o que deu errado.
A Documenta é explícita nisso. Pela primeira vez o evento se dividiu entre Alemanha e Grécia. Quem foi a Kassel em busca da exposição "principal" frustrou-se. Ela está em Atenas, cujo principal museu, por sua vez, mandou uma seleção de artistas nacionais para ocupar os
espaços da Documenta original.
A troca pode ser lida como tentativa de reparação para com o país que é o berço da cultura ocidental. Se economicamente o país foi subjugado pela Europa, culturalmente é elevado à posição central (apesar das críticas que essa decisão gerou).
Em Veneza, a crise ocidental também comparece forte. Por exemplo, no devastador ataque que a jovem artista chinesa Guan Xiao faz ao ícone maior da cultura clássica: o "David" de Michelangelo. Em uma obra de poucos minutos, ela cria um videoclipe electro-pop dizendo em inglês, com forte sotaque chinês: "Este é David, mas ele desapareceu. Você não pode vê-lo. Não sabemos por que estamos olhando para ele". A afirmação fica ainda mais forte diante do medo da emergência do Oriente (em especial da China), tema que permeia tanto Kassel quanto Veneza.
Se a cultura é termômetro das mudanças sociais, há uma figura ausente
das mostras: Donald Trump. A razão é que ele foi eleito quando as obras já tinham sido selecionadas. No entanto, muitos dos conflitos que levaram à sua vitória (que também é sintoma da crise da "cultura ocidental") estão lá documentados.
Se a política falha em tratar desses embates diretamente, a arte ao menos tenta. Veneza o faz por meio da fuga, privilegiando trabalhos escapistas ou ingênuos (há exceções), e Kassel, via o escancaramento incômodo de posições políticas antagônicas e talvez inconciliáveis.
Isso é visível no documentário "Two Meetings and a Funeral", que retrata o "Movimento Não Alinhado" dos anos 1960, que reuniu países dispostos a dizer não às potências da época. Ou na obra de Marilou Schultz, que relembra a cooperação impossível entre os navajo dos EUA e a indústria de semicondutores, a ponto de haver coincidências entre o povo e o design de microchips. Houve também a tentativa de assimilar os navajo como mão de obra de empresas de tecnologia nos anos 1960, até que a cooperação ruiu e
deu lugar a conflitos incontornáveis.
Pode a arte curar o estado de desencanto do mundo ocidental? Desencanto com a democracia, a economia, os modos de vida e o futuro? Olhando a Bienal e a Documenta, a resposta é claramente não. No entanto, ela pode servir de território para revelar o mundo. Um lugar esquisito onde se encontram verdades, que ultimamente andam desaparecidas como o "David" de Guan Xiao.
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