Folha de S. Paulo


O melhor livro de 2016

Lionel Bonaventure/AFP
TOPSHOT - Soldiers pay their respects in front of the Arc de Triomphe during a ceremony marking the 71st anniversary of the victory over Nazi Germany during World War II on May 8, 2016 in Paris. AFP PHOTO / LIONEL BONAVENTURE / AFP PHOTO / POOL / LIONEL BONAVENTURE ORG XMIT: PRX126
Soldados no Arco do Triunfo, em Paris, em cerimônia que celebra a derrota da Alemanha nazista

Este 2016 foi tão complexo que uma boa leitura para entender o ano que se encerra é –na minha opinião– um texto de ficção científica. Trata-se do livro "The Last Days of New Paris" (Os últimos dias da Nova Paris), do escritor inglês China Miéville.

O livro se passa numa Paris ocupada pelos nazistas. Como forma de resistência e medida desesperada, é detonada uma bomba de efeito surrealista (chamada de "S-Bomb"). Como resultado, a cidade é tomada por criaturas que não se sujeitam às leis da lógica ou da biologia. São manifestações vivas de obras de artistas como Max Ernst, André Bretton, Greta Knutson ou Man Ray, chamadas no livro de "manifs". Como os nazistas não sabem como lidar com elas, isso dá à resistência antifascista uma vantagem na polarizada batalha que se desenrola.

Em seu curto livro (que está mais para novela que para romance), Miéville dá uma aula de erudição e imaginação. É difícil pensar em outro autor contemporâneo que escreva com tamanha liberdade, misturando filosofia, história, teoria social e arte. Não é coincidência que o livro funcione tanto como metáfora quanto como manifesto, ajudando a responder à pergunta "O que fazer?".

Um dos personagens centrais é o combatente surrealista Thibaut, que faz parte da resistência composta por poetas, artistas, filósofos, ativistas e arruaceiros em geral. Nas suas palavras, "todos se tornaram, quando foi preciso, soldados". Em determinado momento, Thibaut proclama: "Ninguém deve dizer que nossas ações são supérfluas. Se disserem, responderemos que o supérfluo supõe o necessário".

Curiosamente, os surrealistas juntam-se também aos clérigos para combater a crescente perversidade nazista. Apesar de os surrealistas serem ateus, "todos sabiam que ter um religioso do seu lado, com seus ritos absurdos, ajuda quando aquilo contra o que você luta são demônios". A aliança entre os surrealistas e a igreja é descrita por Miéville como um necessário "casamento de inconveniência".

Outro personagem importante é o "manif" chamado exquisite corpse ("cadáver refinado"). Ele é uma transposição literária da colagem feita por André Breton, Yves Tanguy e Jacqueline Lamba. Trata-se de uma figura totêmica impossível, composta por partes humanas, mecânicas, vegetais, animais e industriais, que ganha vida e se torna um improvável companheiro para Thibaut.

Sei que tudo que está descrito acima soa como devaneio. No entanto, o livro gera um estranho conforto em tempos tão conturbados como os nossos. A principal mensagem de Miéville talvez seja a de que vivemos um esgotamento sem precedentes de paradigmas teóricos para entender ou descrever a realidade. Tudo precisa ser reinventado. Abraçar o que é estranho, desconfiar do que é familiar, pensar grande. Miéville conseguiu fazer isso no território da literatura. O que indica que podemos fazer o mesmo em outros campos sociais também.

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