Folha de S. Paulo


Não tá tranquilo, não tá favorável

"O som é profético, é o que vem primeiro", costuma dizer o escritor francês Jacques Attali. Nesse sentido, uma ferramenta para compreender a realidade do país, sem filtros, é prestar atenção na música feita nas periferias.

Essa música empoderou-se com a apropriação da tecnologia. Primeiro com computadores de baixo custo, no início dos anos 2000. Depois com as lan houses. Hoje, com os smartphones populares.

Isso mudou o perfil da esfera pública no país. Afinal, esses objetos não são só bens de consumo. São ferramentas de produção, comunicação e de articulação.

O resultado é o surgimento de múltiplas cenas musicais ultrapopulares, ainda que periféricas. Produção que não tem espaço nas mídias tradicionais, como TV ou rádio. Mas que circula vigorosamente na internet, principalmente por YouTube, Facebook, WhatsApp e Snapchat.

Goste-se ou não dessas cenas musicais, elas permitem vislumbrar "narrativas" a respeito do estado de coisas no país. Na ascensão do tecnobrega em 2005, era possível ver pistas claras sobre a iminente "ascensão da nova classe média".

Quando o país estava no auge do otimismo em 2012 e 2013, o funk ostentação em São Paulo expressava o desejo de inclusão dos jovens recém-empoderados. A ponto de servir de trilha sonora, cantada em uníssono, nos rolezinhos que adentravam os shoppings da cidade.

Os sinais de que o otimismo com o país fraquejava já eram visíveis em 2013. Enquanto o funk ostentação se tornava trilha sonora de novela, uma nova estética surgia nas periferias. Seu principal representante chamava-se MC Bin Laden.

Essa estética cantava a realidade dura nas áreas mais pobres da cidade. Bin Laden cobriu todo o espectro dessa realidade: cantou sobre violência, drogas, armas e todas as variações da "vida loka". Seu mote era: "Aqui é o verdadeiro Afeganistão".

O sucesso foi imediato. Com zero presença na mídia tradicional, em 2014, MC Bin Laden era o funkeiro mais famoso do Brasil. Lotava com milhares de pessoas shows nas capitais do país, como Belo Horizonte ou Porto Alegre. Conquistou dezenas de milhões de visualizações na internet.

Quem andava pelas ruas de São Paulo em 2014 via um exército de jovens usando o mesmo estilo de cabelo inventado por ele: metade de uma cor, metade de outra, com a "fronteira" entre as duas bem no meio da cabeça.

Em 2016 Bin Laden cruzou a fronteira final. Tornou-se o funkeiro mais conhecido não só das periferias, mas também das classes médias.

Tudo por causa do hit "Tá tranquilo, tá favorável", que viralizou e foi abraçado, enfim, pelas mídias tradicionais. Ver o arauto da dura realidade das periferias paulistas reconfortar todos os brasileiros e brasileiras, do centro e da periferia, dizendo que "tá tranquilo, tá favorável" me enche de otimismo. Que o som seja, de novo, profético.

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