Folha de S. Paulo


Um cardápio de maldades

Pedro Ladeira/Folhapress
Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, durante votação de proposta de reforma política, nesta quarta
Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, durante votação de proposta de reforma política

Notem as diferenças entre dois importantes processos que passaram recentemente pelo Congresso Nacional e que determinarão o futuro de nossa democracia.

O primeiro é a PEC que acaba com o chamado foro por prerrogativa de função, conhecido como foro privilegiado. Hoje, as 55 mil autoridades detentoras de tal privilégio, ao cometerem crimes comuns, podem ser julgadas por tribunais superiores, diferentemente de um brasileiro comum, como eu e você.

A proposta que acaba com essa desigualdade foi criada pelo senador Álvaro Dias, em março de 2013, e tem amplo apoio popular. Ela foi cozinhada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado por três anos e meio. De lá seguiu para o plenário do Senado, onde levou mais seis meses para ser votada em dois turnos, em maio de 2017, quatro longos anos após sua proposta original, depois de muita pressão da sociedade.

Isso tudo foi apenas a primeira parte do processo. A PEC foi encaminhada à Câmara dos Deputados no início de junho de 2017, e está lá ainda, parada até hoje. Marque o cronômetro: quatro anos e meio, e contando.

Essa é a história inacabada de uma lei desejada pela população. Vejamos agora a história de uma lei rechaçada pela população: o projeto de lei que aumenta o dinheiro para campanhas eleitorais.

Nesta semana, a três dias do fim do prazo para alterações das regras eleitorais, faltava ainda a votação na Câmara. Se fosse alguma lei do interesse do povo, levaria meses, anos. Pois levou horas. Já está aprovada.

A aprovação do fundo veio com requintes de crueldade contra nós, cidadãos:

1. Como não tinham votos para aprovar um regime de urgência pela forma tradicional —maioria absoluta— os parlamentares usaram uma manobra regimental para consegui-lo. Esse dispositivo, segundo técnicos da Mesa da Câmara, não era usado há 18 anos.

2. Para não se exporem aos seus eleitores, a quem acham que não devem satisfação, decidiram fazer uma votação SIMBÓLICA, isto é, não nominal. É uma excrescência antidemocrática, uma prova cabal e irrecuperável de covardia. Quem faz isso não merece o título de representante do povo.

3. O dinheiro do fundo sairá, em grande parte, de emendas parlamentares —dinheiro normalmente usado para investimentos, como construção de escolas e hospitais. Qual a magnitude da cara de pau desses parlamentares que, diante da situação de pobreza e abandono do povo, tiram dinheiro de saúde e educação para gastar em campanhas? É um crime contra a humanidade.

4. Os deputados não estão satisfeitos com a distribuição desses R$ 1,7 bilhão. Querem mais. Para que o projeto não precise ser alterado e volte ao Senado, o que estouraria o prazo, aparentemente eles fizeram um acordo imoral com o presidente Temer: ele vetaria cláusulas de distribuição, deixando mais dinheiro ainda para os deputados. Aguardemos para ver se Temer é cúmplice dessa manobra sórdida.

Ainda não satisfeitos, os parlamentares querem mais. Em novo projeto, relatado por Vicente Cândido (PT-SP), tentarão no Senado, até sexta (6), entre outras:

- Adiar para 2020 o voto impresso, duramente conquistado pela população para as eleições de 2018. Isso é gravíssimo, pois abre espaço para fraudes eleitorais.

- Restringir a doação de pessoas físicas. Eles não querem apenas muito dinheiro público, querem também o monopólio das doações. Ao não permitirem doações externas ao "sistema", certificam-se de que nós, descontentes, não possamos interferir no processo.

Eis a reforma política prometida. Ela ofende nossa moral e nossa cidadania. Seu cardápio de maldades reflete o estado de nossa representatividade. É obra de um Congresso majoritariamente irresponsável, egoísta e criminoso, que virou as costas para o povo que o elegeu. Ou trocamos seus componentes, para que os novos mudem o sistema, ou o Brasil seguirá batendo novos recordes de crime, penúria, e desigualdade —gerados pelos que deveriam nos representar e não o fazem.


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