Folha de S. Paulo


Os brasileiros não saíram das ruas; estão nas ruas digitais

Wallace Martins - 24.mai.2017/Futura Press/Folhapress
Manifestante em Brasília durante protesto contra Temer em maio
Manifestante em Brasília durante protesto contra Temer em maio

As ruas continuam vazias, mas a sociedade já começou a atuar de outras formas, igualmente eficientes. Diante de ameaças que podem afundar o país mais ainda no lamaçal, ressurgem sinais de ação coletiva do povo.

A motivação vem de onde não deveria: a tentativa de alguns parlamentares criarem uma reforma política que evita a reforma dos políticos. Uma espécie de reforma antirreforma. Um grupo de deputados assume que, pelo fato de as "ruas" estarem vazias de manifestantes, podem pintar e bordar com o poder que têm. Nesse caso, tentam usurpar R$ 3,6 bilhões de uma população que ainda não teve seu emprego de volta, num país de rombos crescentes. Como se a criação do tal fundo eleitoral não bastasse, a proposta pretende ocultar os nomes de doadores. Mais dinheiro, com menos transparência.

Felizmente, novidades aparecem para impedir uma passividade que caracterizou o Brasil até 2013.

Uma delas é o surgimento de novas ferramentas digitais, que permitem à sociedade exercer cidadania sem sair de casa. Como exemplo, foi criado um mapa para explicitar o posicionamento de cada deputado perante o novo fundo —a favor, indeciso ou contra. A partir desse retrato, a ferramenta permite que cada brasileiro possa entrar em contato com seu representante para expressar como quer que a questão seja tratada.

Isso trouxe, aos deputados, um hábito que não tinham: o de escutar o que seus eleitores querem. E trouxe, aos eleitores, uma nova consciência: a de poder expressar o que querem, fora das eleições. Esse mapa, que tem tido nos últimos dias um crescimento exponencial de usuários, estreita a distância entre eleitores e representantes. É uma evolução da democracia.

Como na maioria dos embates políticos, uma parte vai aprendendo a lidar com a outra e se defender dela. Os deputados imaginaram que, ao se esconderem como indecisos no mapa, poderiam se preservar de críticas. Mas os eleitores perceberam que ficar indeciso não é admissível para quem tem o mandato de defender abertamente os interesses de seus eleitores. Com isso, deputados que se dizem "indecisos" têm sido cobrados mais do que qualquer outro. É fascinante o despertar de uma sociedade que aprende a exercer cidadania.

O resultado é a transformação, ainda lenta, de uma classe política que percebeu que o povo acordou para o poder que tem. Os que não perceberem isso, independentemente do dinheiro de campanha, não vão conseguir se reeleger, por um motivo que também tem a ver com tecnologia.

Será fácil, nas eleições de 2018, lembrar aos eleitores como cada deputado votou em momentos decisivos: impeachment, medidas contra corrupção, investigação de Temer, fim do foro privilegiado e, agora, o fundo eleitoral. Essa lembrança pode ser feita onde mais interessa à democracia: nos redutos eleitorais de cada deputado, no lugar onde estão os que deveriam ser por ele protegidos. Será o melhor remédio para a memória curta que sempre favoreceu os piores políticos.

O momento exige também uma deferência. Encontrei no Congresso deputados e senadores que, independentemente de mapas, estão dispostos a fazer campanhas mais baratas para não onerarem o bolso dos contribuintes. Percebem o momento de crise econômica que afeta saúde e emprego e se recusam a votar por uma medida que cuida apenas de interesses pessoais. Estão dispostos a enfrentar a recriminação de seus colegas de partidos. Esse grupo é crescente, motivado ou não pela pressão do mapa. Houve até dois partidos que fecharam questão contra o fundo.

Seja nas ruas de terra e asfalto, onde estaremos no dia 27 de agosto, seja através das ruas digitais, os hábitos cidadãos dos brasileiros estão mudando. E com eles, o comportamento dos políticos. Os que perceberem essa transformação a tempo serão os únicos com chance de sobrevivência. Os outros serão engolidos pelas ruas que eles não conseguem enxergar.


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