Folha de S. Paulo


Um corpo que cai e o nosso desaprumo civilizatório

SÃO PAULO - Ouvem-se 13 tiros e também aquele silêncio macabro da queda livre. A única lei vigente ali, a da gravidade, evidencia sua força por cerca de cinco segundos. Não fosse o penhasco, inexistente em Manhattan, bem poderia passar como uma cena de Martin Scorsese em "Gangues de Nova York", panorama da vida sanguinária da ilha lá pela metade do século 19.

Só que são Copacabana e Ipanema, no meio de uma tarde de segunda do século 21. O cineasta é na verdade um morador vizinho ao morro do Cantagalo, zona sul do Rio. Com o celular, ele registra o momento em que um homem despenca durante tiroteio entre a polícia e supostos traficantes. O corpo foi identificado como sendo de André Lourenço, 22 anos.

É espantoso como a barbárie assusta pouco. Nesse novo normal, uma cena assim, numa área rica da cidade, serve como enchimento viral das redes sociais, consumido sem pipoca. Mas ela mostra, sim, que a coisa não está dando certo não. Já se foram oito anos da criação das UPPs e da coroação da "mãe do PAC" no Alemão. Sete anos desde que o Rio ganhou a Olimpíada —os gringos já vieram, viram, venceram e foram embora, mas as favelas continuam lá.

O desaprumo civilizatório carioca tem paralelo claro em São Paulo. Quem caminha pela região central já dá de ombros quando se depara com uma horda de pessoas a vagar de maneira desconexa, gente de diversas idades e origens. Peste negra da Idade Média? Não, a Cracolândia.

Também ali o progresso a cargo do Estado pouco se faz notar. No caso, dois governos, municipal e estadual, cada um puxando as pessoas para um lado. Não é preciso entender de vetor para enxergar a resultante.

Nesta semana, Obama disse que mandará voo tripulado a Marte nas próximas duas décadas. Nesse ritmo, os americanos talvez encontrem marcianos antes de os brasileiros percebermos humanos na esquina das nossas maiores metrópoles.


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