Folha de S. Paulo


A Rússia devia ouvir, e não calar, Yaya Touré

Já é o segundo apelo a um boicote organizado a um grande evento esportivo na Rússia: esta semana, o futebolista Yaya Touré estimou que os jogadores negros podem preferir ficar de fora da Copa de 2018 do que submeter-se aos cânticos racistas e insultos vindos das bancadas dos estádios russos. "Se não tivermos confiança, não vamos", explicou o atleta da Costa do Marfim e jogador do Manchester City.

Touré falou depois de apresentar uma queixa contra a torcida do CSKA de Moscou, que recebeu o City para a Champions (vitória dos ingleses por 2x1). De acordo com o médio, ao longo do encontro foi provocado pelos torcedores russos com a imitação de sons de macaco. O capitão, que usava uma braçadeira com um slogan que dizia "não ao racismo", queixou-se ao árbitro - mas nenhuma providência foi tomada para corrigir a situação no decurso da partida.

Os dirigentes do clube negam a acusação e garantiram que não ocorreu nada de impróprio no jogo em questão. O seu compatriota Seydou Doumbia, que alinha no clube russo, declarou que Touré estava "claramente a exagerar" ao avançar com uma denúncia à Uefa.

Nenhuma destas declarações deve surpreender: sempre que o assunto vem à baila - e infelizmente, são recorrentes os casos de abusos raciais, xenófobos ou homofóbicos - as diversas instâncias russas apressam-se a desmentir, desvalorizar e contemporizar com os comportamentos em causa, encontrando quase sempre explicações abstrusas para os factos quando estes são tão evidentes que não podem ser .

A Rússia já estava na berlinda da crítica e censura da comunidade esportiva internacional por causa das leis que proíbem a "publicidade" da homossexualidade, e que provocaram enorme desconforto entre as delegações que vão participar nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi, dentro de três meses. Também por causa disso, houve quem repensasse a participação no evento.

Não creio que um atleta profissional faça uma sugestão de um boicote de ânimo leve: a participação numa Copa do Mundo, como numa Olimpíada, é um ponto alto competitivo e de promoção da carreira. Mas é bom saber que muitos profissionais põem valores universais de respeito e dignidade humana acima de qualquer ganho esportivo.

Obviamente, ninguém deseja que um boicote se efective. Essa possibilidade deve ser encarada do ponto de vista político: seguramente não haveria o mesmo incentivo à resolução dos fenómenos discriminatórios que justificam essa posição de força.

No caso do futebol, depois de um período titubeante de protelamento e indecisão, a Uefa acabou por endurecer as punições por incidentes que envolvem racismo, violência ou intimidação, e essas sanções têm demonstrado resultados. E mais importante do que isso, talvez, têm contribuído para a consciencialização dos adeptos individuais ou das torcidas organizadas.

Quando estamos a falar na organização de uma Copa do Mundo, convém haver garantias de que situações "desagradáveis" não vão acontecer: que os times nacionais africanos não vão ser saudados com bananas ou que os adeptos não vão levar mensagens de apoio a grupos e partidos nazistas para as bancadas - como aconteceu também no jogo do CSKA, onde se podia ver uma faixa de apoio ao partido de extrema-direita grego Aurora Dourada.

As instituições que governam o futebol já perceberam o que têm de fazer, mas muitos Governos nacionais ainda se debatem com dificuldades, resistindo ou adiando o combate vigoroso à intolerância no esporte. Sendo assim, resta aos outros agentes intervir: a parada é alta, mas como mostrou Touré, os jogadores não estão dispostos a tudo para a vitória.


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