Folha de S. Paulo


O pesadelo do Qatar, parte dois

Esqueçamos, por um momento, todos os factos relativos às pressões políticas e ao pagamento de subornos e outros actos de corrupção de dirigentes que votaram pela realização do campeonato do mundo de futebol de 2022 no Qatar. Essas influências e interferências são conhecidas hoje, mas não o eram em 2010, quando a organização da Copa foi atribuída.

Atendamos apenas àquilo que era impossível não se saber na altura em que foi preciso decidir a que candidatura atribuir a organização da Copa. Como, por exemplo, que a estação do Verão no Médio Oriente é insuportavelmente quente. É difícil acreditar que, ao avaliar o projecto do Qatar, ninguém na Fifa se tenha questionado sobre as condições atmosféricas extremas em que os futebolistas teriam de actuar, ou então que os torcedores teriam de suportar, se o campeonato se desenrolasse no emirado da Península Arábica.

A discussão que ontem terminou na Suíça sobre a eventual alteração do calendário da Copa do Verão para o Inverno (no hemisfério Norte), é uma conversa pegada que só faz sentido porque a Fifa se recusa a discutir a sua decisão inicial de atribuir a organização do torneio ao Qatar. Desde o início se ouviram vozes avisadas, que repetiram e insistiram que essa era uma escolha arriscada e complicada, que ia dar confusão.

E a confusão aí está, tal como as complicações que se adivinham - e que já não se resolvem, apenas com relações públicas. Com a sua recusa em rever o processo, a Fifa arrisca ser arrastada para tribunal e pagar indemnizações sem jeito, a desregular durante anos o funcionamento dos torneios nacionais e internacionais.

Ontem Blatter nem que tentou sacudir a pressão, mas acabou por deitar mais achas para a fogueira. "O erro foi pensar que poderíamos realizar esta competição durante o Verão", respondeu, quando lhe perguntaram se a Copa do Qatar era um erro.

O processo de consulta que a Fifa lançou ontem será uma anedota ainda maior se não recomendar a alteração do calendário e a realização do torneio no Inverno - uma decisão que já se percebeu vai obrigar à reorganização das datas de todas as competições de futebol e à renegociação de todos os contratos comerciais e transmissões televisivas.

As resistências, as dúvidas e as incógnitas são demasiadas para acreditar que esta história ainda poderá ter um final feliz. Até porque, como bem lembrou o presidente da Uefa, Michel Platini, as questões do calendário tornam-se insignificantes quando problemas bem mais graves mancham irremediavelmente o caso do Qatar: a exploração desumana dos trabalhadores imigrantes que estão a construir os estádios do deserto.


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