Folha de S. Paulo


A Rússia de Isinbayeva

Não sei se foi por incompreensão ou por ingenuidade que a super-estrela russa do salto à vara Yelena Isinbayeva, recordista mundial, bicampeã olímpica, aceitou perorar sobre os pequenos actos de "rebelião" individual de alguns dos participantes nos Mundiais de Atletismo de Moscovo contra a lei anti-propaganda LGBT do Presidente Vladimir Putin: por exemplo as atletas que pintaram as unhas com as cores do arco-íris, ou os que dedicaram as suas medalhas a amigos gay.

O que sei foi que ela os criticou por não respeitarem o seu país e os cidadãos russos. E sei, porque a ouvi a explicar, num inglês que não era assim tão ruim, que no seu país era assim que as coisas funcionavam: "Rapazes com raparigas, raparigas com rapazes" - aliás, depois disso, passei horas a trautear o refrão da velhinha canção dos Blur, "Girls who are boys, who like boys to be girls, who do boys like they're girls, who do girls like they're boys"

Não sei se a atleta de 31 anos, que se esforçou por negar todos os rumores de que tencionava pôr fim à sua carreira em glória com mais um título mundial, é uma pessoa intolerante e homofóbica. Depois de meio mundo quase ter caído de costas com as suas declarações, ela veio garantir que não é. Como uma de muitos fãs das suas proezas esportivas, quero muito acreditar que ela "respeita as opiniões dos seus colegas" e se "opõe à discriminação das pessoas em função da sua orientação sexual, que vai contra os princípios olímpicos", como explicou depois que foi pedida a sua demissão de embaixadora dos Jogos da Juventude ou de "prefeita" da aldeia olímpica de Sochi.

Talvez ela seja só uma pessoa desatenta, ou desinformada. Talvez porque passou a vida a treinar para ser a melhor saltadora do mundo, ela não acompanhasse tão bem as aulas de História, ou estivesse cansada para ler a literatura do seu próprio país. Porque então ela saberia que na Rússia não há só "pessoas como nós, comuns, normais", e que no seu país - como em muitos outros infelizmente - existem outras pessoas, igualmente "comuns e normais", que são hostilizadas, perseguidas, humilhadas, agredidas apenas porque são homossexuais.

Talvez porque Isinbayeva treina na Itália e passa a maior parte do tempo na sua casa de Monte Carlo, ela siga tão à risca o seu conselho de que "as pessoas devem respeitar as leis dos outros países, especialmente quando se encontram na posição de convidados": ali não está na lei, nem tão pouco nos costumes da sociedade, a penalização de quem procure saber sobre a homossexualidade ou de quem, para usar as suas palavras "promova e faça essas coisas na rua" (?)

Infelizmente, Yelena, não é verdade que "na Rússia não há esse problema" - e sinceramente acredito que por "problema" a saltadora estava a referir-se à discriminação contra os gays e não à homossexualidade.


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