Folha de S. Paulo


Ganharam os melhores

E aí está: o estrondo que ecoa por toda a Europa depois dos jogos da primeira-mão das semi-finais da Champions é o barulho das certezas absolutas do futebol a cair por terra. As vitórias categóricas dos dois times alemães sobre as equipas espanholas já estão a ser interpretadas como uma espécie de mudança de paradigma no futebol europeu.

Não alinho com aqueles que vêem aqui o prelúdio da derrocada do modelo do "tiki-taka", embora me encontro entre os que acham que o estilo rolo compressor do Barcelona está um pouco estafado. Já todos vimos exibições inesquecíveis dos blaugrana - como também vimos jogadas maravilhosa dos merengues. A história e a tradição são importantes no futebol, mas não existem no vazio: foi isso que aprendemos nas noites de terça e quarta-feira passada. Isso, e a vindicação da estratégia dos clubes e da federação da poderosa Alemanha.

O destaque da jornada vai para a noite verdadeiramente de sonho de Robert Lewandowski, naquela que foi a sua primeira grande prova. Mas mais do que abrir a porta da final ao Borussia Dortmund, o póker do jovem avançado polaco carimbou o regresso à glória depois de uma longa e difícil travessia do deserto - a última vez que o time alemão jogou uma meia-final foi há exactamente 15 anos, perdendo por 2-0 contra o mesmo Real Madrid que agora bateu convincentemente e com toda a justiça.

A história do clube na última década é um exemplo (e bem podia ser uma inspiração) de como se pode desperdiçar tudo e recuperar tudo. No final da década de 90, sob o comando do lendário Ottmar Hitzfeld, o Borussia coleccionou seis títulos em quatro épocas, mas o clube que parecia imparável acabou por ser travado por uma espectacular má gestão e negligência, tanto financeira como esportiva, que quase o lançou na falência e o atirou para a irrelevância.

As circunstâncias difíceis obrigaram o clube a tomar decisões ainda mais difíceis - por exemplo, descartar-se dos melhores jogadores, época após época, em negócios que asseguram que a contabilidade se mantém à tona -, e ao mesmo tempo a inovar e encontrar formas criativas de garantir a subsistência, por exemplo com o negócio das camisetas esportivas (que a bem dizer não foi exactamente um sucesso).

A contratação, em 2008, de Jürgen Klopp, bem pode ser elogiada como o momento da viragem: em pouco menos do que dois anos, o treinador talismã recuperou a equipa, criou um modelo de jogo arrojado, enérgico e disciplinado, e colheu os frutos da aposta na formação de jovens jogadores de talento.

Aqui em Portugal, país em crise e sob intervenção internacional, e onde a maioria torcia pelos vizinhos espanhóis, as derrotas de Barcelona e Real Madrid esta semana foram logo comentadas como mais uma acha na fogueira da humilhação e dominação dos países do Sul pela Alemanha da senhora Merkel. Este exercício de projectar as nossas angústias no desfecho de um jogo de futebol é divertido e até terapêutico, mas todos nós sabemos que, como na roda da lotaria, não há nada de premeditado num jogo de futebol, e a capacidade da chanceler da Alemanha em impôr a sua vontade sobre os seus parceiros europeus ainda não se estende aos relvados.

Os alemães jogaram melhor do que os espanhóis e mereceram ganhar, e nada mais do que isso.


Endereço da página: