Folha de S. Paulo


A luz e as trevas

Infelizmente, as explosões junto à meta da maratona de Boston não foram a primeira vez que o terror tomou conta de um evento esportivo.

Para a história não ficarão os resultados do etíope Lelisa Desisa, numa fabulosa estreia vitoriosa a correr a distância máxima; ou da queniana Rita Jepto, que numa ponta final verdadeiramente impressionante, liquidou a competição a partir da penúltima milha para um primeiro lugar quase por photo-finish.

Para a memória dos milhares de atletas, profissionais e amadores, que correram pelas ruas de Boston no Patriot's Day da Nova Inglaterra, ficará o pânico, o horror e a incompreensão de ver o lugar simbólico da meta transformado num cenário de guerra.

Como a arte, o esporte atira-nos para um outro mundo, uma outra dimensão, que convive com o nosso quotidiano mas se refere a uma outra ordem, quase sobrenatural: a da sublimação do espírito humano. Enquanto praticantes ou enquanto meros espectadores, todos nós nos deixamos cativar, envolver e inspirar por essas manifestações do esforço, da dedicação, do assombro, da competência, do talento, da inteligência, da vontade, da beleza... que tanto podem ser expressas num concerto sinfónico, num jogo de futebol, numa tela de cinema, numa pista de atletismo.

Quando estes dois universos paralelos se confrontam e chocam, o resultado é sempre violento. Pode ser uma violência psicológica e simbólica, que nos desmoraliza e incomoda: quando as regras são voluntariamente e conscientemente desrespeitadas para influenciar, manipular ou inverter um determinado resultado. Ou, muito pior, pode significar tragédia e devastação, como em Boston.

Ironicamente, por mais concorrência, rivalidade e confronto que exista na sua prática, o esporte é, na sua essência, o lugar da paz. O acto esportivo é aquele que se define pela total igualdade, pelo completo respeito e o perfeito equilíbrio. Os seus adeptos procuram um corpo são em mente sã - é, por isso, particularmente gravoso que essa inocência primordial seja destruída à força de bombas.

Como referiram muitos especialistas, os acontecimentos transformarão a forma como encaramos os espectáculos esportivos: a segurança à entrada dos estádios vai apertar, o aparato policial nas ruas onde se correm maratonas vai crescer, à semelhança do que aconteceu nos aeroportos após os atentados de 11 de Setembro de 2001.

Enquanto escrevo, não sabemos ainda qual terá sido a motivação dos dois jovens irmãos que as autoridades norte-americanas identificaram como os responsáveis pelas explosões. Sabemos apenas o essencial: como em qualquer ataque terrorista, a acção destes dois indivíduos tinha como propósito causar o caos, a destruição e o medo, e teve um profundo e medonho impacto na vida de milhares de inocentes.

E sabemos também, como referiu o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, num inspirado discurso aos residentes de Boston e do mundo, que o terror não é capaz de vencer o espírito humano: os atletas da maratona de Boston continuaram a correr para além da meta, para ir dar sangue aos hospitais, para ir ao encontro de pessoas perdidas e desesperadas. E não deixarão de correr, porque a luz sucede às trevas e felizmente a bondade humana é ilimitada.


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