Folha de S. Paulo


Santos com pés de barro

Os americanos ainda estão a decidir se querem ou não perdoar a batota e mentira de Lance Armstrong, tão humildemente confirmada numa entrevista com a rainha dos sentimentalismos televisivos Oprah Winfrey. Como era previsível, o suspense do momento rendeu audiências astronómicas, fez explodir as redes sociais e motivou centenas de artigos na imprensa mundial. Mas ninguém pode verdadeiramente reclamar-se surpreendido com a cândida admissão do super-campeão do ciclismo, que viveu anos sob suspeita de ter usado doping na sua extraordinária carreira.

Pelo contrário, nada indicava que o relato da tragédia pessoal de Manti Te'o, uma estrela do futebol americano de nível universitário, fosse uma invenção. As palavras de consolo e outras manifestações de apreço e apoio voaram assim que se soube que o jogador da universidade de Notre-Dame, soubera da morte da avó e a namorada --as duas mulheres mais importantes da sua vida, alegavam algumas das notícias --num espaço de seis horas, na véspera de um jogo importante para a sua equipa.

Dilacerado pela dor, Te'o entrou em campo e numa exibição transcendente liderou o time para uma vitória improvável por 20 a 3. Desconsolado e abatido pelo desgosto, dedicou-se a apoiar as famílias que, tal como ele, se viam privados dos amores das suas vidas: crianças que, como a sua namorada Lennay Marie, tinham sucumbido à leucemia.

A história de amor de Manti e Lennay foi escrita e reescrita por dezenas de publicações americanas. A prosa era quase sempre emocionante, empolgada, compreensiva, dramática, intimista. Esta semana, revelou-se que o caso era também inventado: a jovem pura e simplesmente não existia.

Descoberta e exposta a trapaça, o atleta de Notre Dame divulgou um comunicado afirmando ter sido vítima de uma piada de mau gosto. Ele desenvolvera um relacionamento online e acreditara de boa-fé que a pessoa com quem comunicava era Lennay Marie, uma jovem de 22 anos, estudante da universidade de Stanford, vítima de um acidente de viação que quase a matou e paciente de câncer. "Saber que fui manipulado e é extremamente doloroso e humilhante", escreveu Te'o.

Mas como pode Manti ter sido manipulado e levado a acreditar numa identidade falsa, se nas várias entrevistas que deu nunca disse que o seu namoro era virtual? Se descreveu o seu primeiro encontro com a jovem, ou com os seus familiares, não como um episódio imaginário, mas com o calor e a emoção da interacção humana?

Da mesma maneira que a sociedade americana venerava Lance Armstrong como um autêntico herói, também Manti Te'o personificava os valores do respeito, humildade, integridade, altruísmo e sacrifício que a opinião pública acredita distinguirem os grandes campeões. E não é só a o público: os mídia também têm de acatar uma parte da responsabilidade, pelo tratamento "discriminatório" que muitas vezes reservam às estrelas esportivas.

É verdade que a reserva da vida privada tem de ser respeitada sempre, mas também é um facto que é as histórias de sucesso esportivo por vezes toldam aquela dose saudável de cepticismo que se exige à profissão. Se a imprensa não sente pruridos em desmascarar o carácter de políticos ou empresários, porque resiste a pôr em causa o sucesso de um homem que venceu sete Tours em França e sobreviveu a um câncer? E porque acha tão desconfortável checar se a informação é correcta quando um atleta se diz inspirado e apaixonado por uma mulher que ninguém além dele consegue identificar?

Todos cometemos erros e temos as nossas fraquezas, lembrou e bem Lance Armstrong. A imprensa bem se pode penitenciar por criar --e também destruir-- tantos santos com pés de barro.


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