Folha de S. Paulo


Lula e FHC: algo a ver?

Encontro, conversa e até pactos entre adversários são frequentes na política. Um dos exemplos clássicos é a negociação entre Lênin e o governo alemão para garantir a entrada do bolchevique, então exilado, em território russo.

O kaiser alemão, Guilherme II, tinha interesse em enfraquecer as posições da Rússia, aliada da Inglaterra e França na Primeira Guerra. Lênin queria o fim do conflito imperialista, para ele um sinônimo do massacre de trabalhadores e de atraso na revolução. Por motivos opostos, Lênin e os alemães, que em seus domínios perseguiam os comunistas até a morte, fecharam um acordo. O líder russo voltou ao seu país num trem blindado sob a proteção do imperialismo alemão. Era abril de 1917. O resto a história se encarregou de contar.

Descontados o tamanho dos personagens e a gravidade da situação, o episódio deixou lições. Acordos e concessões valem a pena quando não implicam a renúncia das posições fundamentais de cada lado. Pesa também o momento de negociações desse tipo. Mais que a forma, acima de tudo interessa o conteúdo do acerto.

Lula encontrar FHC, em princípio, não representa nenhum cataclisma. Os dois nunca deixaram de se falar. Em 1978, o então sindicalista fez parte de comitês pela eleição de FHC para senador. De lá para cá, o mundo e os protagonistas deram voltas, cada um escreveu sua biografia de forma peculiar. Mas o diálogo nunca foi verdadeiramente interrompido. Senão diretamente, por intermédio de interlocutores em comum.

Alguma dúvida? As mesmas empreiteiras hoje alvos da Lava Jato são figuras habituadas a visitar dependências oficiais desde outros tempos. Cresceram na ditadura e engordaram nestes tempos democráticos. Não é à toa que nenhum partido, nenhum mesmo, fica a salvo da metralhadora de denúncias envolvendo estatais e similares. Pensar na ausência de intercâmbio entre estes atores, e seus vícios, seria uma demonstração de insensatez ou hipocrisia.

A questão é a agenda. O PSDB tem um plano muito claro: como demonstram as votações no Congresso, o objetivo é sangrar o governo mesmo com contorcionismos inexplicáveis à luz de sua plataforma eleitoral. Pretende também limpar sua turma, perigosamente ameaçada por vazamentos imprevistos da chuva de delações premiadas.

Já o PT vive um grande embaraço. Em nome da "governabilidade", o Planalto vem adotando a receita pregada pelo adversário. O custo desta guinada aparece no crescimento do desemprego, no corte de gastos sociais, nos juros absurdos, no sufocamento da indústria, na queda de arrecadação e, por consequência, na erosão galopante de popularidade. O absurdo é tão evidente que até Joaquim Levy decidiu recuar em metas incompatíveis com o cenário de recessão imposto por tal política.

É difícil imaginar que diálogo pode acontecer nestas condições. Lula vai pedir a FHC uma trégua para poder aplicar o programa do PSDB? FHC vai pedir a Lula concessões para aliviar medidas que seu partido sempre defendeu?

Um encontro entre Lula e FHC, nestas condições, cheira mal. Sem uma pauta pública, de interesse social, que inclua a punição implacável, mas justa, de corruptos e corruptores e leve em conta a necessidade de uma verdadeira reforma política aprovada por representantes escolhidos para este fim —sem tudo isso, aos olhos de muitos uma conversa entre ambos parecerá apenas o ensaio de uma nova operação, a Abafa o Caso.


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