Folha de S. Paulo


O racionamento da verdade em SP

Há cerca de dez dias, recebo um recado da Rita, que trabalha em casa. "Seu Edson (o porteiro) pede para tomar banho logo. É que parou de chegar água à noite e só uma das duas caixas do prédio está cheia. Ninguém sabe até quando."

Sobrevieram duas certezas. A primeira: o racionamento de água em São Paulo é fato, seja o eufemismo utilizado: "stress hídrico", "estiagem histórica", "crise de mananciais". Depois, como meu bairro faz fronteira com uma região habitada por tucanos e "formadores de opinião", logo teremos providências. Dito e feito. Em tempo recorde convocaram-se mortos para aumentar o volume da Cantareira.

Estranho como praticamente sumiram as ressalvas ao tal "volume morto". Reportagem do UOL, do Grupo Folha, alerta sobre possíveis consequências: metais pesados desta reserva podem prejudicar o sistema nervoso, fígado, rins e até provocar câncer. O uso deste volume pode esgotar a água da bacia dos rios e prejudicar o ecossistema.

E ainda: o custo do tratamento da água é maior, podendo ser até 40% mais caro e resultar em aumento da conta em 2015 (informações completas, gráficos incluídos, estão aqui ).

Para quem duvida do tamanho do problema, neste domingo (18) o "Estado de S. Paulo", que pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser petista, traz duas páginas mostrando regiões da cidade que há 30 anos sofrem com a falta d'água. A jornalista Ana Carolina Sacoman acrescenta. Embora more a apenas 11 km da praça da Sé, há mais de uma semana seu prédio recebe água só duas horas por dia.

Tudo não passaria de caprichos da natureza se o colapso não fosse anunciado. Em metade da região metropolitana, São Paulo convive com a perda física de água de 45% no caminho que vai da represa ao consumidor.

Pelo menos desde maio do ano passado o nível do sistema Cantareira vem definhando. O que foi feito? A Sabesp, controlada pelo Estado, não explica. Em compensação, os moradores receberam um encarte com o pomposo nome de "Relatório Anual de Qualidade da Água" relativo a...2013! Talvez porque não tenha sobrado água nem para fazer exames mais recentes.

É praxe marqueteira tentar desqualificar adversários comparando crimes. Ah, se eu roubei, você também roubou, se eu cometi desmandos, você também andou fora da linha. O objetivo é buscar a soma zero: se todos são meliantes, vamos falar de amenidades.

Como não sou marqueteiro, decididamente a prática não me atrai. Por exemplo: em nenhum momento compactuo com roubo de dinheiro público, maracutaias em estatais federais, estaduais e municipais. Tampouco avalizo alianças espúrias apenas para garantir votos.

A tática, no entanto, ajuda a aferir a credibilidade dos contendores. O PSDB nos últimos 20 anos tem o Estado como sua principal vitrine. E o que se vê não é bom. A própria Sabesp é alvo de inúmeras denúncias de procedimentos esquisitos, como vem alertando o sempre atento repórter Fábio Serapião.

Suspeita-se que muita gente encheu o bolso em velocidade similar ao esvaziamento de reservatórios. Do Metrô, nem é preciso falar. O dado clássico de comparação é a Coreia, que no mesmo tempo de existência construiu 287 quilômetros de trilhos ante 74 aqui.

Enquanto isso, um conselheiro do Tribunal de Contas (de Contas!), braço direito do PSDB paulista, é pilhado com somas milionárias no exterior relacionadas ao escândalo Metrô-CPTM.

Responde que tudo não passa de perseguição e continua lá fazendo as contas dele com o dinheiro do povo. Quer mais? Um ex-diretor da Companhia de Processamento de Dados é investigado sob acusação de favorecer o caixa tucano. Saiu-se ao estilo dos velhos anões do Orçamento. Alega ter ganho R$ 26,5 milhões na loteria...

A defesa da ética na política é um dos bordões preferidos da oposição. De palavra, não há quem discorde disso. Mas pelo jeito o que anda em falta mesmo, além da água, é vergonha na cara.


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